No deserto, as miragens ganham vida e podem até dar sentido à luta pela vida, mas continuam sendo miragens. As miragens podem servir para realimentar os sonhos e fazer crer que as chances de sobrevivência são maiores, mas continuam sendo miragens.
A política externa brasileira vive de miragens. São miragens importantes, motivam o país, mas não se pode esquecer que são miragens.
Quem acompanha o blog sabe que sempre post as notícias que de algum modo exaltam este momento do Brasil. Me diverte ler estas notícias pensando no quanto elas incomodam os antiLula ferrenhos, o quanto incomodam o PSDB e o FHC por colocar o Brasil atual num patamar incomparável com o que ocorria no governo FHC. Se havia um setor no qual FHC e seu grupo imaginavam que seriam insuperáveis era na política externa, como um presidente monoglota poderia superar o príncipe da sociologia paulista? Não apenas superou, como o reduziu a insignificância dentro da história da política externa brasileira. FHC corre o risco de ser tratado nos livros de história da política externa brasileira como um Eurico Gaspar Dutra qualquer. E dentro do meu humor insólito, acho divertido acompanhar isso.
Entretanto entre a realidade e as miragens cultivadas pela internacional sobre o Brasil há uma larga distância. A imprensa internacional adotou o Brasil, adotou o Brasil porque o Brasil defende em escala mundial os valores liberais nas relações internacionais que são compartilhados por esta mesma imprensa. O Brasil segue um padrão de ação que a imprensa liberal internacional gostaria de ver generalizado. Além disso, difundir o Brasil não compromete, não é uma potência militar, não viola uma série de valores cultivados pela imprensa liberal como a China. Maximizar o soft power brasileiro não representa risco para a grande imprensa liberal, além disso o apoio ao Brasil aponta-o como modelo a ser seguido, especialmente para os governantes de esquerda. Então o Brasil foi abraçado em todo a sua agenda de política internacional.
O ativismo do Brasil em termos de política externa só é efetivo porque as ações brasileiras são significativamente amplificadas pela imprensa internacional. Sem poder militar, sem capacidade de coerção, o Brasil só pode contar com a persuasão, com a capacidade de convencimento e para tanto a imprensa funciona eficazmente ao legitimar as pretensões brasileiras, explica-las, e valida-las. Note-se, por exemplo, se os EUA ignoram por completo a idéia do G-20, e restringem as negociações ao G-8, qual seria a repercussão na mídia liberal mundial?
Agora vários periódicos trouxeram a comparação entre o Brasil e o México, apontam como o México que era o modelo em meados da década de 90 retrocedeu e o Brasil avançou. Isto deve servir como exemplo, todos os países que foram apontados como modelos a serem seguidos pela mídia liberal na seqüência sofreram grandes crises. O Brasil ainda tem uma vantagem não foi objeto de nenhum relatório do Banco Mundial apontando-o como modelo.
O Brasil tornou-se mais ativo em termos de política externa, mas não se tornou mais poderoso no sistema internacional. A arma do Brasil é a persuasão, a formação de alianças, a capacidade de mobilização dos seus diplomatas. Não se pode confundir aumento do ativismo em política externa com aumento do poder brasileiro na política internacional.
A imprensa brasileira mostra grande incompreensão da situação tanto pelos viés oposicionista que adota quanto pela ignorância mesma. O caso de Honduras é paradigmático. A UOL colocou uma notícia com uma manchete que dizia que o caso de Honduras mostrava que a OEA só funcionava quando os EUA atuavam. A jornalista Eliane Cantanhêde escreveu neste domingo (01/10) uma coluna intitulada “Quem pode pode” para tratar da questão, diz que por mais que o mundo esteja mudando, apesar de todo esforço do Brasil, a questão de Honduras só andou quando os EUA se movimentaram. E eu fico pensando, mas o que eles esperavam? Do mesmo modo que os EUA não conseguem demover o presidente do Sudão ou o governo da Coréia do Norte, agora, se a China interferir na questão de fato, o problema norte-coreano seria resolvido como por encanto. As organizações internacionais não tem poder próprio, seja a ONU, seja a OEA, o poder deles está relacionado ao comprometimento dos Estados-membros com os objetivos e ações da organização. Evidentemente que se os membros mais poderosos não se comprometem com a instituição, ela se enfraquece. Estranho seria a OEA ser tão poderosa que não dependesse dos EUA para agir, aí deveríamos pensar se não seria mais seguro “fechar” a OEA. Era evidente desde o início que o Brasil e a OEA não seriam capazes de demover a liderança golpista, por isso sempre pressionaram os EUA. O que o Brasil poderia para fazer o governo do turno de Honduras ceder? Nada, os dois países não possuem relações econômicas relevantes, nem políticas, resistir ao Brasil não representa um ônus para Honduras exceto em termos de imagem. Mas alguém pensa que o governo de Honduras tenha uma imagem a zelar no exterior que o fizesse ceder? Estranho seria Honduras ceder. Só faria sentido questionar o poder e a capacidade de ação do Estado brasileiro se houvesse um golpe na Bolívia, no Paraguai e no Uruguai (e talvez mesmo na Argentina) e o Brasil não fosse capaz de fazer pressão suficiente a ponto de demover os golpistas.
Jânio de Freitas também escreveu sobre política externa neste domingo, mas tratou de outra questão do acordo militar entre os EUA e Colômbia. O artigo intitulado “A liderança em questão” afirma que a idéia de que o Brasil lidera a América do Sul foi completamente negada pela assinatura deste acordo. Outro equívoco. Mas aí um equívoco mais honesto do que o da Eliane Cantanhêde. Dizer que o Brasil lidera a América do Sul é, em geral, uma força de expressão. De fato, a América do Sul é uma região em disputa, e os Estados da região orbitam em torno de pelos menos três eixos de poder, Washington, Brasília e Caracas. De acordo com seus interesses políticos e econômicos, os governos da região se aproximam mais ou menos de um destes eixos. Ora, é evidente que a Colômbia está numa posição isolada dentro da região e o Estado mais vinculado aos interesses dos EUA na região. É uma posição idealista imaginar que o Brasil poderia ter impedido o acordo entre a Colômbia e os EUA, para tanto o Brasil deveria que ter oferecido uma alternativa mais vantajosa para solucionar o problema que o governo colombiano considera mais ameaçador, a guerrilha e o narcotráfico. Ora em nenhum momento o Brasil se dispôs a apresentar esta alternativa. Caso Brasil, Equador e Venezuela se dispusessem a assumir a agenda política colombiana e montar uma operação conjunta para desmontar a guerrilha e o narcotráfico que ocorre no seu entorno, a Colômbia teria uma alternativa viável (mesmo superior) à cooperação com os EUA. Mas os países da região rejeitam a agenda colombiana, é um direito deles. Entretanto, para retirar os EUA da região, o melhor caminho seria se comprometer com a agenda colombiana. Agora qual o apoio interno que o presidente Lula teria para enviar tropas brasileiras para enfrentar a guerrilha e o narcotráfico na fronteira com a Colômbia e mesmo eventualmente realizar operações conjuntas na Colômbia? A sociedade brasileira está disposta a assumir o custo de ser de fato o líder da América do Sul?
A principal restrição que o Brasil sofre na sua ação internacional é o fato de não ser hegemônico na América do Sul. Hegemônico no sentido gramsciano do termo. Os países da região não identificam que possam atingir o seu interesse através das suas relações com o Brasil, e isso enfraquece significativamente o Brasil. No mesmo artigo, Jânio de Freitas aponta que o novo acordo realizado entre a Argentina e o Chile é um golpe na idéia de liderança brasileira. Podemos apontar também o fato da China estar disputando o mercado argentino com o Brasil. O que os países da região querem? Dinheiro, querem mercado para exportar seus produtos. E a capacidade do Brasil de ofertar isso é reduzida, o Brasil contribui pouco para a solução dos problemas dos seus vizinhos, a situação melhorou com os financiamentos do BNDES, mas o Brasil precisaria manter um “sólido” déficit comercial, ou pelo menos ser um grande importador da produção de seus vizinhos, deveria ser o grande parceiro comercial dos países sul-americanos como a China se tornou para os países asiáticos, mas o Brasil está bem longe disso. É surpreendente, por exemplo, que o Mercosul ainda seja discutido no Uruguai, que não haja uma completa integração econômica entre o Brasil e o Uruguai.
Por outro lado, não se pode minimizar a importância do Brasil na América do Sul. O governo Evo Morales identifica a Venezuela de Hugo Chávez como seu principal aliado. Mas a estabilidade política da Bolívia passa em grande medida pelo Brasil. A disposição brasileira em renegociar os acordos do gás com a Bolívia como a disposição brasileira em renegociar Itaipu com o Paraguai são cruciais para a sobrevivência destes governos, para ampliar suas margens de ação política. Também Hugo Chávez sabe que boa parte da sua atuação se deve ao Brasil. Os limites da ação internacional de Hugo Chávez vai até o ponto onde o Brasil pode lhe dar suporte, ele sabe disso e não ultrapassa este limite. Sem o apoio do Brasil, a pressão americana sobre a Venezuela seria muito maior. Após a fracassada tentativa de golpe em 2002, os EUA não tentaram mais nada diretamente, porque em 2003 já não podiam mais contar com o apoio do Brasil como anteriormente. Chávez sabe que caso a oposição se eleja no Brasil em 2010, a sua posição internacional ficará profundamente vulnerável. Chávez sabe também que pára continuidade do seu projeto política a integração com o Brasil é fundamental, solidificaria a estratégia de desenvolvimento alternativa. Por isso, mesmo não exigindo que o Brasil faça parte da ALBA, mesmo sabendo que o Brasil nunca poderá fazer parte da ALBA, Chávez busca aprofundar projetos conjuntos com o Brasil. O Brasil ganhou uma importância no comércio exterior venezuelano que não tinha antes de Chávez e Lula.
As ações do Brasil ganharam repercussão internacional quando o Brasil assumiu o discurso hegemônico na mídia liberal internacional. Isto fortalece o Brasil nos fóruns multilaterais mundiais, mas tem pouco impacto nas questões sul-americanas. Aqui os vizinhos querem resultados econômicos mais concretos por se aliarem ao Brasil. É preciso compatibilizar as duas coisas. E neste sentido ainda se constata o limite econômico do Brasil. O Brasil se tornou atrativo para o capital internacional, os fluxos de capitais não cessam. Isto reforça o espaço brasileiro nos fóruns econômicos internacionais. Mas este despontar econômico brasileiro ainda não foi capaz de trazer junto a América do Sul. O Brasil ainda precisa crescer muito, e adotar políticas mais efetivas de integração para ser capaz de fato criar um espaço econômico sul-americano colocando-se como centro.
A dimensão internacional continuará sendo superdimensionada neste momento de crise e de vazios de liderança, mas o Brasil não deve deixar se envolver pelo canto da sereia. É preciso continuar medindo os passos enquanto constrói uma sólida retaguarda. Esta retaguarda está em construção. Mas não está pronta. É preciso mais ousadia na integração sul-americana para que ela possa se reverter mais rapidamente em suporte político para o Brasil. o Brasil vai com cuidado com medo de perder neste processo de integração. Claro que haverá setores que serão perdedores líquidos num caso de integração sul-americana, mas é impossível que politicamente o Brasil não seja o ganhador líquido e mesmo economicamente o Brasil terá mais vantagens.
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