LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Governos intrometidos
O Fed e seus pares não têm outra alternativa: é preciso "pensar o impossível" e conter a contração do crédito
JÁ DISSE o historiador Eric Hobsbawn: desde o final dos anos 1970, os ideólogos proclamavam que "era preciso terminar com tudo aquilo". A palavra de ordem era desarticular os controles sociais e políticos criados para "administrar" o capitalismo pós-Grande Depressão dos anos 30. A crise financeira atual exibe as dissonâncias do "grande desmonte", prelúdio à utopia dos mercados financeiros auto-regulados, peça de ficção ensaiada pelos fanáticos do livre mercado.
Na segunda metade do século 20, o sucesso das intervenções governamentais amainou a severidade das flutuações econômicas e suscitou hipóteses otimistas a respeito do controle do ciclo econômico. O economista Hyman Minsky escreveu, em meados dos anos 1980, que "a economia e os mercados financeiros (na crise de 1974/75) mostraram grande resistência à deflação cumulativa de preços dos ativos e ao risco de uma depressão profunda. Os choques foram absorvidos, e suas repercussões, atenuadas."
Ao prometer a salvação sem castigo a inocentes e a pecadores, os governos intrometidos fortaleceram a fé na eficiência dos mercados e, melhor, promoveram o ganho sem risco. Ao longo dos últimos 30 anos, a complacência disseminou-se entre bancos, empresas e consumidores.
O moral hazard chegou ao clímax quando Greenspan reduziu rapidamente a "policy rate" para abortar a crise da Nova Economia e impulsionar mais um ciclo de crédito nos EUA. Os preços dos imóveis residenciais foram às alturas. A valorização das casas impulsionou o endividamento acelerado das famílias, insaciáveis no apetite por consumo.
Os economistas divergem sobre a profundidade e o alcance dos problemas criados nos mercados de hipotecas e seus derivativos. Os pessimistas já formam um contingente majoritário no mercado de opiniões.
Uma conjugação de fatores adversos pode levar a uma recessão mais prolongada, devido aos "ajustamentos" viciosos entre a desvalorização da riqueza, a tentativa das famílias de reduzir o endividamento cortando os gastos e a subseqüente queda na renda e no emprego.
A curto prazo, o Fed e seus pares no mundo desenvolvido não têm outra alternativa: é preciso "pensar o impossível" e conter a qualquer custo a contração do crédito. É a moral "hypocrisy" em seus melhores momentos. Bernanke ultrapassou o mandato do Fed e, no afã de impedir a deflação de ativos, cuidou de organizar a salvação do Bear Stearns.
Diante da continuada desvalorização do dólar, há quem augure para os EUA de hoje destino semelhante ao da Inglaterra no entre-guerras.
Analogias históricas são perigosas.
Conservadores ilustrados, como Martin Feldstein, por exemplo, entendem que é necessário rediscutir o sistema monetário internacional.
Propõe que a reforma contemple a redução do papel do dólar como moeda de reserva, sua substituição progressiva por um sistema plurimonetário. Recomenda ressuscitar a proposta européia da chamada "conta de substituição". Discutida na reunião do FMI em 1979, foi rejeitada por Volker, que reafirmou o poder do dólar ao impor ao mundo uma elevação brutal da taxa de juro.
LUIZ GONZAGA BELLUZZO , 65, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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