Agora em 21 de setembro, a população brasileira tomou conhecimento de Tegucigalpa. Descobrimos Honduras e Tegucigalpa. E, como sempre ocorre com países periféricos, foram descobertos pelas suas misérias. A imprensa brasileira é pouco atenta aos eventos internacionais, assim só quando as tragédias fogem da triste rotina, ou seja, são trágicas até para os que vivem em tragédia, é que se tornam pautas das redações brasileiras. Honduras e Tegucigalpa foram trazidas a fórceps para as primeiras páginas dos jornais brasileiros. Até então, eram personagens secundários de sua própria história, tudo o que era noticiado sobre o golpe de Estado em Honduras e suas conseqüências era para retratar as ações dos personagens principais, Hugo Chávez e os EUA.
Toda a crise hondurenha aparecia como um epifenômeno do plano de Chávez para dominar a América Latina através do suporte a governantes que apóiem a difusão da ideologia bolivariana. Do outro lado, teríamos os EUA, aliados tradicionais de Honduras e da elite política e militar que derruba o presidente Manuel Zelaya. Toda a expectativa era sobre o comportamento dos EUA, irão inovar na sua política externa para América Latina? Claro, o presidente Manuel Zelaya também é um personagem, parece uma caricatura ambulante com suas feições singulares de bigode e chapéu. Claro que haveria espaço para ele na mídia brasileira. Dificilmente se encontraria um personagem mais fácil de ser rotulado de liderança populista. No fim parecia ser uma história simples, uma reprise ou m “remake” de uma novela muito antiga e sempre repetida na América Latina com militares golpistas, governos populistas, intervenções norte-americanas.
O ingresso de Zelaya na embaixada brasileira deu espaço no noticiário para os dramas que afligem a população hondurenha, para os conflitos presentes na sociedade, para a divisão na sociedade, para a pobreza, o militarismo, etc.. Notou-se que o golpe em Honduras vai além de uma questão sobre a ação de Hugo Chávez e os EUA na região. Entretanto, é interessante notar como as visões legalistas e rent-seeking dominam o noticiário sobre a crise. A idéia vendida é que a questão hondurenha se resume a um presidente populista que quer se manter no poder a despeito da lei e é apoiado por uma população que quer receber benesses do Estado. No fim, o povo e seu líder querem tirar proveito do Estado hondurenho. A diferença entre os dois fica por conta do julgamento, enquanto o presidente aparece como o populista esperto que engana o povo; o povo aparece como uma massa de ignorantes facilmente manipulada.
Todo o processo social de Honduras é ignorado. Obscurece-se o fato de que Zelaya é um produto do establishment político hondurenho. Evidentemente seria muito mais fácil continuar no poder em Honduras sendo o presidente que as elites políticas e militares hondurenhas desejavam. A inflexão na posição política e na prática governamental de Zelaya decorre da tentativa de dar uma solução efetiva para alguns dos problemas hondurenhos. Como quase todos os outros governantes da região que se aproximaram de Hugo Chávez, o objetivo era aumentar a oferta de energia no país com um preço facilitado e obter recursos financeiros que permitissem realizar transformações econômicas no país. É uma tentativa de aumentar a margem de manobra do governo num país onde o Estado é controlado por uma oligarquia formada por poucas famílias e para as quais Honduras não tem problemas, porque elas vivem muito bem e se beneficiam das condições atuais de Honduras. Entre as 10 famílias que controlam Honduras e o povo, Zelaya fez uma opção pelo povo ao tentar encaminhar soluções para os problemas que afligem o país.
Isso é populismo? Pode ser. Mas na América Latina, o populismo tem sido o único mecanismo eficaz de mobilização popular, e, portanto, de incorporação do povo ao processo político. Qualquer participação política popular na América Latina é rotulada de populista, porque a idéia é que o povo deve ficar quieto esperando enquanto os governos definem e implementam políticas, o povo deve ser um sujeito passivo, o objeto das políticas públicas e não um agente. Os sistemas políticos da região não comportam a participação popular e o de Honduras menos ainda. O que muitas vezes não se entende é que sempre que o povo se mobiliza aqui haverá instabilidade, o sistema político não está preparado para isso. Ele é preparado para as mobilizações e pressões de lobistas, para conchavos entre elites, trocas de favores, para a corrupção, mas não para o povo. Entretanto, a mobilização popular para defender os seus interesses é tão legítima (ou até mesmo mais) quanto a mobilização dos lobbies, dos grupos de interesse. Se o governo americano pode agir para defender os seus interesses em Honduras, se as empresas americanas podem agir para defender seus interesses em Honduras, se a elite econômica, política e militar pode se organizar para defender os seus interesses, por que o povo não pode? Será que o povo é incapaz de avaliar se durante o governo Zelaya sua vida melhorou ou não? E se as oligarquias podem viver de prebendas do Estado, por que os pobres não podem escolher o seu candidato em função dos benefícios financeiros que terão pelas políticas governamentais?
Retornando ao golpe e às suas conseqüências, nada melhor do que um golpe militar na América Latina para se fazer um Obama se parecer com um Bush. Primeiro, um discurso contundente contra o golpe e defesa do retorno de Zelaya ao poder. Depois, o retrocesso, a velha solução Óscar Arias, uma saída negociada, uma contemporização com os golpistas, a legitimação das posições golpistas. Uma saída evidentemente conservadora. Mas nem mesmo esta alternativa é aceita pela elite política e militar de Honduras, o retorno ao poder de Zelaya está completamente descartado.
Os EUA procuram, então, se afastar do problema e transferir a questão para a OEA. Discute-se muito o significado desta transferência, vários analistas interpretaram como os Estados Unidos estando transferindo a responsabilidade de seus problemas para os próprios países latino-americanos. Entretanto, é possível interpretar de outro modo, seria possível transferir o problema para uma organização com menor legitimidade? Por ter sido usada como instrumento de ação direta dos EUA na América Latina e Caribe, a OEA é uma organização fraca, com pouca legitimidade para interferir e solucionar os problemas da região. A transferência da questão para a OEA foi resultado da dificuldade encontrada por Barack Obama de alterar a política externa norte-americana para região. O governo dos EUA ficou dividido em relação a forma de se posicionar frente ao golpe. Divisão esta que foi explorada pelo “presidente” de fato Roberto Micheletti, que contrapôs em alguns momentos o discurso do presidente Obama ao discurso da secretária de Estado, Hillary Clinton.
No entanto, a oposição dos países latino-americanos ao golpe, e em especial do Brasil, exigindo uma tomada de posições mais firme faz com que mesmo se distanciando da solução do problema os EUA imponham restrições financeiras ao governo instalada em Honduras, dificultem a entrada nos EUA de alguns membros do governo de Honduras, inclusive de Roberto Micheletti, com a suspensão do visto tanto diplomático quanto de turista. Políticas de efeito limitado que não inviabilizariam a continuidade de Micheletti no poder. Não se pode esquecer que Honduras é uma área tradicional de controle do governo americano e das empresas americanas. Uma oposição veemente, incisiva ao golpe inviabilizaria o golpe, forçaria uma devolução do poder ao presidente Manuel Zelaya.
Aparentemente, o quadro caminhava para a solução desejada pelo governo interino, iriam se arrastando no poder até as eleições de novembro, um novo governo seria eleito, tomaria posse, e o mundo voltaria a esquecer Honduras, quem iria se preocupar por tanto tempo com quem está governando Honduras? As idas e vindas no discurso de Zelaya sobre o retorno para Honduras parecia indicar a mesma coisa. Fora de Honduras, viajando de país para país, logo se cansariam de seus discursos e demandas, e tudo voltaria ao normal. Seria uma solução por fato consumado.
Ora, desde o início para além da posição retórica de Hugo Chávez, fica claro que o Brasil tem uma posição de princípio contra o golpe em Honduras. A retirada do embaixador brasileiro em Tegucigalpa, as declarações tanto do presidente Lula quanto do ministro Celso Amorim ou do assessor Marco Aurélio Garcia deixam evidente que para o Brasil restaurar a democracia em Honduras é um objetivo com o qual não se pode transigir. A aceitação do golpe em Honduras gerará desdobramentos em outros países latino-americanos. As oposições aos diversos governos de esquerda da região poderiam se sentir tentadas a experimentar a solução hondurenha. A similaridade entre as várias histórias políticas da região não permite ignorar fenômenos desta natureza.
Apesar desta posição brasileira, a capacidade do Brasil de atuar sobre um acontecimento em Honduras é bastante restrita em princípio. Não há fortes laços políticos e econômicos para que o governo hondurenho se sinta pressionado pelas posições brasileiras. A pressão brasileira é sobre os EUA, organizações internacionais e países latino-americanos que lhe são mais próximos. Até este momento sequer o Brasil conseguiu levar o caso para as Nações Unidas.
O retorno de Zelaya a Honduras altera este quadro. Na verdade, pouco importa se o Brasil sabia que o presidente Manuel Zelaya estava retornando para Honduras ou não. O relevante é que o retorno de Zelaya deu uma oportunidade do Brasil atuar num conflito completamente fora de sua área de influência. Tradicionalmente o Brasil não tem interesse na América Central, reconhece a região como área de atuação dos EUA. E, além disso, tomando uma posição que projetaria ainda mais a política externa brasileira no mundo.
A dimensão simbólica na política externa é muito importante, mas numa sociedade do espetáculo, não basta defender as causas corretas, ter uma política externa objetiva, é preciso torná-la visível, fazendo com que as ações do Estado reflitam o seu poder e importância no sistema internacional. Normalmente, o Brasil tem poucas oportunidades para isto porque não faz política externa a partir de bravatas, especialmente em questões de política internacional. Neste sentido, a volta de Zelaya e o pedido para ingressar na embaixada brasileira deram uma oportunidade de baixo custo e baixo risco para o Brasil atingir dois objetivos simultâneos, marcar posição contra regimes golpistas na região e se colocar como um país líder na política internacional. Até este momento, a reação do governo de fato de Honduras apenas favoreceu o alcance destes objetivos pelo Brasil que conseguiu levar o caso até para o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O Brasil colocou o governo hondurenho num impasse, porque atacar o Brasil não é fácil. O Lula já consolidou uma imagem internacional que não será o governo Roberto Micheletti que será capaz de alterá-la para igualar o Lula ao Hugo Chávez. E evidentemente Manuel Zelaya sabia disso e, por isso, foi para a embaixada brasileira e não para a venezuelana. Por mais que o governo interino condene o Brasil por supostamente estar interferindo em assuntos internos do país, esta posição não terá aceitação internacional. Nenhum país importante irá assumir a defesa dos golpistas. Do mesmo modo, com a manifestação do governo norte-americano e das Nações Unidas sobre a embaixada brasileira, o governo hondurenho não ousaria atacá-la.
Entretanto, pesaria sobre o Brasil apenas um risco importante. Num país convulsionado politicamente, com uma população fortemente armada, sempre haverá a possibilidade de grupos paramilitares de extrema-direita atacarem a embaixada brasileira para assassinar o presidente deposto Manuel Zelaya com a conivência do exército e da polícia hondurenha, mas sem uma participação explícita.
De todo modo, não há como o Brasil perder. O atual governo de Honduras tem um prazo de validade, se não cair pela pressão internacional para o retorno de Zelaya, cai com as eleições de novembro. Qualquer que seja o candidato vitorioso nas eleições terá como primeira missão resolver a questão para conseguir algum apoio na comunidade internacional, e não haverá outra solução que não seja a reincorporação de Manuel Zelaya na vida política hondurenha. Neste sentido, o Brasil também deve adotar uma posição intransigente quanto ao golpe, mas não deve ter uma posição intransigente em relação às eleições. É claro que as eleições em Honduras não serão eleições livres ocorrendo durante a ditadura de Roberto Micheletti. Mas, caso as eleições venham a ocorrer na situação atual, uma recusa absoluta em aceitar os resultados da eleição pode colocar o Brasil numa posição isolada e acabar fazendo com que ele seja responsabilizado pelo fracasso das negociações. O Brasil deve defender a democracia em Honduras, e nisto não deve transigir. Mas, dada a baixa capacidade do Brasil definir os rumos políticos de Honduras, o apoio brasileiro a Manuel Zelaya não pode ser intransigente ao ponto de prejudicar os interesses brasileiros e sua posição junto a comunidade internacional.
Para o Brasil, a crise hondurenha pode consolidar a sua projeção mundial e estender sua área de influência, se tornar um ator na América Central. Para o Honduras, a crise pode abrir espaço para as transformações sócio-econômicas do país. Independente do que ocorra com Manuel Zelaya, a elite hondurenha entendeu que terá que fazer concessões ao povo caso queira continuar mantendo o controle político do país sem o exercício permanente da violência contra a população.
Nenhum comentário:
Postar um comentário