Alguém me perguntou o que seria capitalismo de Estado num post sobre o livro “O século soviético”. Primeiro irei tratar do sentido empregado no post, e no fim do sentido mais comum que o termo foi usado nos anos 70.
Vou responder e aproveitar o ensejo para introduzir no post Raya Dunayevskaya, uma intelectual marxista ucraniana completamente ignorada no Brasil. Dunayevskaya trabalhou com Trotsky, mas ao longo do tempo foi se afastando dele e criou uma corrente teórica dentro do marxismo norte-americano, cujos desdobramentos podem ser encontrados no site: www.newsandletters.org.
Raya Dunayevskaya não é o autor mais conhecido a falar sobre o capitalismo de Estado. Mas foi a primeira. Já em 1941 ela escreveu que a União Soviética era uma sociedade capitalista, e não um Estado burocrático ou degenerado por Stálin como queria Trotsky.
No livro “Marxism and freedom from 1776 until today”, Dunayevskaya aponta que a URSS passou de um Estado dos trabalhadores para um capitalismo de Estado com a lógica do planejamento centralizado que alijou os trabalhadores do poder, e produziu uma desumanização do capitalismo submetendo-o a uma máquina controlada pelo Estado. Continua predominando a lógica do predomínio da acumulação de capital no setor de bens de produção sobre a produção de bens de consumo e satisfação das necessidades humanas. Numa consideração bastante significativa a autora diz que o fetichismo da mercadoria é substituído pelo fetichismo do plano. Ou seja se o capitalismo abstrai e esconde as relações sociais que fundamentam o valor das mercadorias, o planejamento soviético descola-se tanto na formulação quanto na definição de metas e execução das relações sociais que fundamentaram a sua origem. É definido de forma arbitrária e negando as necessidades sociais, políticas e de consumo do povo soviético.
Duas citações da autora em tradução livre sobre o capitalismo de Estado:
“O capitalismo de Estado não é uma continuação do desenvolvimento do capitalismo no sentido de m desenvolvimento sem rupturas. É um desenvolvimento através da transformação no seu oposto. O capitalismo vive e progride pela livre competição. O seu máximo desenvolvimento é encontrado sob uma democracia burguesa ou democracia parlamentar. O capitalismo de Estado significa, e só pode significar, burocracia, tirania e barbarismo como pode ser visto na Alemanha nazista e na Rússia totalitária.”
“A inviabilidade do capitalismo de Estado como “nova” ordem social é demonstrada pelas mesmas leis de desenvolvimento do capitalismo privado, isto é, a compulsão para explorar as massas dentro do país e gerar guerras no exterior.”
Há uma série de imprecisões conceituais na autora até porque ela assume uma posição que talvez não seja teoricamente válida da forma radical, que é o humanismo, mas ela possui idéias interessantes.
Enfim, o capitalismo de Estado é um sociedade capitalista onde ao invés do capital ser controlado pela burguesia, e desta burguesia controlar o Estado e utilizá-lo para atingir os seus objetivos, o capital é controlado pelo Estado e pela burocracia do Estado. Onde as decisões não ocorrem pelos mecanismos de mercado, mas a partir do planejamento centralizada realizado pela burocracia sem qualquer participação da sociedade.
De fato, há um debate teórico não só sobre o capitalismo de Estado, mas sobre a natureza social e econômica das sociedades do Leste Europeu. Porque há um debate sobre a transição ao comunismo que ficou inconclusivo pela dinâmica real das sociedades ditas comunistas.
A primeira questão a ser colocada é que ao ocorrer a Revolução Russa nem Lenin nem ninguém diria que a sociedade então implantada era comunista. Era sim uma sociedade que iniciava a transição para o comunismo. É preciso lembrar que teoricamente no comunismo ocorreria a abolição do Estado. E Lenin tinha consciência que isso era um objetivo distante. Os sovietes era um instrumento de gestão dos trabalhadores, mas não significava a abolição do Estado. De fato, o regime político existente para Lenin era ditadura do proletariado. A revolução proletária ocorre derruba a classe dominante burguesa e instaura uma ditadura do proletariado, ou seja, a antiga classe dominante perde todos os seus direitos. E a partir daí se inicia as transformações da sociedade capitalista em um sociedade socialista e finalmente comunista. Não existe mágica, fez revolução, agora é socialista ou comunista. Há a transição.
O programa leninista era de realizar a transição para o comunismo. Com a morte de Lenin, Stálin assumi e começa a dar um direcionamento para uma aceleração do processo de acumulação de capital no campo e na indústria. É preciso reduzir rapidamente o gap econômico e tecnológico existente entre a sociedade soviética e a sociedade ocidental. Isto será realizado rapidamente. Nos anos 30 este desnível já será passado. Ora mais aí ficava uma questão, aquilo já era o socialismo ou o comunismo ou ainda havia algo a ser feito? Teoricamente ainda se distava bastante do ideal comunista ou socialista. Mas Stálin decreta que a transição para o comunismo já havia sido encerrada e que aquela era a sociedade comunista.
Os críticos de direita vão chamar aquelas sociedades de socialismo real. No sentido de que o que o socialismo ou comunismo podem fazer é apenas aquilo. O socialismo ou o comunismo não são aquilo que está na teoria, mas aquilo que está ali e se pode ver e não pode ser nada mais do aquilo.
Os primeiros críticos de esquerda serão Trotsky e os seus discípulos que iram considerar que a sociedade soviética estava efetivamente no caminho do socialismo, estava em transição, mas havia sido dominada pela burocracia. A burocratização da sociedade, do partido e das instituições políticas havia paralisado o avanço do socialismo, era preciso desbloqueá-lo, mas a URSS considerava sendo uma sociedade em transição.
A segunda onda de críticas à esquerda são as do capitalismo de Estado. A URSS sequer teria iniciado a transição ao socialismo, seria de fato um Estado capitalista cujo controle dos meios de produção estaria nas mãos da burocracia que exploraria o proletariado. Após a queda do socialismo do Leste Europeu, Robert Kurz, em Colapso da Modernização, escreveu para mostrar que o modelo de economia que Lenin tinha para a Rússia era o capitalismo alemão. Portanto reinterpreta o socialismo real do Leste Europeu apenas como um instrumento para acelerar a acumulação de capital e permitir que a Rússia superasse seu atraso secular em relação ao Ocidente.
Estas críticas são críticas gerais sobre a natureza econômica do sistema. Obviamente há “n” variações destas mesmas críticas ao se considerar os autores em particular críticas, e há outras críticas centradas nas questões políticas do regime.
Por fim, o termo capitalismo de Estado também foi utilizado e talvez mais popularmente seja utilizado assim, na divulgação feita por Paul Boccara. O capitalismo de Estado seria uma sociedade capitalista, sem qualquer projeto de socialismo ou comunismo, onde o Estado assume cada vez mais funções econômicas em função do processo de concentração e centralização do capital. Ou seja, o capitalismo monopolista daria origem a um capitalismo monopolista de Estado. E as facções comunistas que adotaram esta idéia imaginavam que a partir daí a transição para o socialismo seria muito mais fácil, pois o Estado já teria o controle da economia. Também se utilizou o termo para designar as sociedades periféricas, como o Brasil, onde o avanço do desenvolvimento capitalista com o processo de industrialização foi conduzido pelo Estado e não pela burguesia nacional. Capitalismo de Estado, portanto, é um termo controverso e ao se utilizá-lo academicamente é preciso definir o sentido que está sendo atribuído a ele.
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