Segue abaixo uma parte das notas de leitura do livro “Tratado sobre a Convivência” do filósofo espanhol Julián Marías.
MARÍAS, Julián. Tratado sobre a convivência: concórdia sem acordo. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
p.60- “Uma das mais profundas verdades formuladas por Ortega é a de que o homem faz tudo por razões “líricas”. Comprovei-o – e pratiquei-o – ao longo de toda minha vida, e vi a esterilidade do prosaísmo, cuja consequência imediata é o tédio, inimigo público de nossa época.”
p.21- “No homem, o que “é” quer dizer primariamente o que pretende ser, isto é, o projeto. Quando se carece deste, ou não é atraente, sobrevêm o descontentamento, o desalento, a mesquinharia e a propensão a culpá-los, a “eles”, aos outros seja quem for que se invente.”
p.75- “Dir-se-á que o indivíduo tem capacidade de reagir, de rejeitar e corrigir, de restabelecer a verdade e a importância efetiva. Mas será verdade? É preciso contar com a limitação, a unilateralidade, a propensão ao fanatismo. São muitos os espanhóis – e não só os espanhóis, infelizmente – cujo único meio de comunicação é a televisão; dela se nutrem, sendo para elas o equivalente da realidade”
p.79- “A dificuldade se baseia em esquecer ou não entender o caráter projetivo da vida. Cada idade é uma fase de projetos, convergentes e articulados num projeto principal, como a de maior alcance num foguete, o que permite a articulação desse movimento contínuo e sem interrupção alguma que é a vida – a não ser que se leve em conta a mínima e essencial que é o sono, o que torna possível que se volte a começar a cada dia.
“Esse caráter projetivo é fundamental e engloba tudo; insisti que se recorda e se narra a partir dos projetos e, naturalmente, a partir deles se imagina e antecipa o futuro.”
p.79- “Creio que a qualquer altura da vida, em todas as idades, se fazem projetos. A partir deles, evoca-se o passado. Que por isso “revive”, se modifica, é interpretado, ganha novas significações. O argumento vital reflui sobre o já vivido, vai se incorporando às novas fases, vai se depositando assim no que se chamará uma personalidade.”
p.81- Senancour em “Obermann” a partir de Unamuno: “O homem é perecível; é possível; mas pereçamos resistindo e, caso nos esteja reservado o nada, não façamos que seja uma injustiça.”
p.81- “A ânsia de perduração de Unamuno o levava a concordar fervorosamente com essa atitude. Trata-senada menos, de Resistir ao nada. Como pode isso ser feito? Evitar o nada, a destruição da pessoa que somos, sua aniquilação não está em nossas mãos; mas a resistência ao nada, fazer com que este não se justifique, é algo que podemos fazer. Em nossa época, são muitos os homens que o aceitam passivamente, porque lhes disseram que “é assim”, sem perceber que o disseram aqueles que, por certo, não o sabem nem o poderiam justificar. Dão-no como válido, chegam ocasionalmente a orgulhar-se disso, agem como se “já” não estivessem na vida.”
p.82- “Como se pode resistir ao nada? Projetando sem fim, sem limite. Diz-se e repete-se que nada podemos levar conosco depois da morte. Se se pensa em “coisas”, certamente é verdade: nem riqueza, nem títulos, nem honrarias. O único que podemos levar conosco são nossos projetos. Não que os levemos “conosco”, como se fossem uma bagagem – temos de ir “leves de bagagem”; é que somos esses projetos, consistimos neles. Sem eles, não somos “nós”, cada um de nós. Aqueles que nos constituíram em nossa vida, em sua revisão e recapitulação, em sua posse final, são nossa realidade, aquela que chamamos “eu” e que tem um nome próprio. Isso é o que pode e deve resistir ao nada.”
p.103-104- “A maior parte da ocupação humana, inclusive intelectual, consiste em lidar com coisas. Os conceitos usados constantemente se referem a elas.
“Mas ocorre que nós não somos coisas, mas pessoas. Algo radicalmente distinto, definido por atributos inteiramente próprios e originais, irredutíveis. Não “somos” propriamente, mas “vivemos”; não somos exclusivamente reais, mas consistimos essencialmente em irrealidade – imaginação, projeção, insegurança; somos realidades dramáticas, escolhidas por nós mesmos, que imaginamos quem pretendemos ser e procuramos realizá-lo.”
“Nada comparável às coisas, embora levemos nossa vida com elas, embora algo de nossa realidade seja “coisa” – aquilo com o que fazemos nossa vida. Isso é tão evidente que, mal é afirmado, todos o compreendem. Mas com o decorrer do tempo, quando voltam os olhos em outra direção, muitos deixam de ver-se como pessoas e aceitam passivamente a “coisificação” que de todos os lugares lhes é oferecida de modo insistente. Abandonam a evidência que possuíram transitoriamente e recaem no erro inveterado de ver-se como coisas, como o que não são nem podem ser.
“O homem tem de fazer a sua vida, certamente com as coisas; mas tem de afirmar sua realidade, com a tensão criadora que é sua condição e seu destino, evitando que as coisas o desestabilizem e o reduzam ao contrário de sua realidade. Ser homem é um permanente e inseguro esforço de hominização, uma conquista do que se é: uma pessoa.”
p.105- “Não se deve tentar contentar aqueles que não vão se contentar.”
p.107- sobre as concessões políticas e direitos que são feitas apenas para evitar conflitos, protestos: “Deve haver a convicção de que nunca se tem toda a razão, de que os outros têm alguma, e é preciso dá-la; mas não se pode dar-lhes a que não têm.”
p.110- “É a definição que Goethe dá do diabo: “Der Geist, der stets verneint”, o espírito que sempre nega. Recordei certa vez que a palavra decisiva é “sempre”, o que desvela a monotonia do demônio. “Sim ou não, como Cristo nos ensina” é um ditado popular espanhol. É preciso dizer ambas as coisas, segundo exija a realidade. A atitude diabólica é o negativismo, a negação sistemática diante de tudo, o espírito destrutivo. Ele se exercita de maneira muito particular contra o que tem verdadeira realidade, em especial se tem relação com a bondade. É o contrário da atitude amorosa diante do real, que pode e deve ser crítica e negar o que seja infiel ao exigido, precisamente por ser adesão ao que algo deve ser, tem de ser; essa negação concreta e limitada é o instrumento que busca a perfeição.”
p.133- “Convivência, inclusive colaboração, é uma coisa. Cumplicidade é outra bem diferente.”
p.137- “Falar-se-á de liberdade de expressão: pode-se dizer o que se quiser da liberdade dos outros, que pode ir da recusa a conversar com os que transgridem as normas imperdoáveis à ruptura da colaboração com as ações legais oportunas. O que não se pode aceitar é que alguém desabafe ao bel-prazer à custa da dignidade de outros, ou da própria realidade, que é o mais respeitável deste mundo, e tudo continue como antes, sem sanção nem conseqüência.”
p.141- “A verdade é coerente; não entra em conflito consigo mesma; se se compara o dito por alguém com outras coisas que esse alguém disse, e se a comparação resiste, pode-se concluir que todas elas são, se não “verdadeiras”, porque o erro é sempre possível, ao menos “verazes”, ou seja, que o autor as julgou verdadeiras.
“A mentira é o critério decisivo. Não pode ser admitida nem aceita, porque isso envolve cumplicidade; não se pode fingir que se acredita no que diz aquele que mente.”
p.148- “A incapacidade de admiração é um indício infalível da inferioridade e desconfiança.”
p.152- “Nada é plenamente público se não adquire o relevo necessário, se não é “notificado” à sociedade em seu conjunto, e isso não se limita à imprensa escrita, mas ainda mais ao rádio e à televisão.”
p.152- “A ignorância é um fator decisivo, com o qual é preciso contar. É assombroso o número de coisas importantes que são desconhecidas pela imensa maioria das pessoas.”
p.152- “Quando se diz a verdade, reconhece-se a razão que cada um tem, e não se dá razão a quem não a tem; e com isso se consegue um reflexo fiel da realidade, que é o mais respeitável deste mundo.”
p.153- Péricles: “Aquele que sabe e não se explica bem se iguala àquele que não pensa”
p.153-154- “Há três formas de comunicação pública: a retórica, a propaganda e a administração. A primeira, nascida na Grécia, que teve épocas gloriosas, é a arte de comover os homens sem profaná-los, a partir da verdade, nutrida por ela, potencializada pela beleza da palavra. A propaganda, sinistra manifestação de alguns tempos, e muito especialmente do nosso, é a técnica de manipular os homens, sem dúvida profanando-os, mediante a demagogia e a mentira, para conseguir alguns fins que envolvem uma degradação que pode ser duradoura.
“Quando não se tem o talento da boa retórica e não se quer cair na abjeção da propaganda, pode-se recorrer à “administração”, isto é, à notificação apagada, inerte, frequentemente flácida, de conteúdos aceitáveis e “verdadeiros”.
“Escrevi verdadeiros entre aspas porque não estou certo de que o sejam. Verdade – em grego, “alétheia” – é desvelamento, franqueza, manifestação, iluminação. Consiste em que o real apareça, fulgure, brilhe. Se isso não acontece, algo não será falso mas não resplandecerá em sua verdade.
p.154- “A política pode ser degradante, mas também pode ser uma arte nobilíssima, merecedora de admiração e gratidão. Mas não se pode esquecer que é uma “arte”, que precisa ser dominada, ou de todo modo aprendida. Se me apressam, direi que é a primeira e mais importante condição. Se se quer um nome de político, estrangeiro e já falecido, recordarei os nomes e as frases cunhadas por Churchill, que, como se fosse pouco, legou ao mundo o gesto do V [Vitória].”
p.156- “Dá-se muitas vezes o nome de “espírito crítico” ao negativismo, o que é um erro; o espírito crítico consiste em observar atentamente o real, distinguir o bom do mau, o existente do inexistente, “le vrai d’avec le faux”, o verdadeiro do falso, como dizia Descartes.”
p.157- “Os males existem, com certeza, e ninguém em seu juízo perfeito poderia negá-lo. A maldade existe também, e é muito mais grave. Repugna-me indizivelmente que se tratem como “calamidades” as maldades humanas. Fala-se das matanças, das crueldades, das opressões, das humilhações impostas às pessoas, como se fossem comparáveis com os terremotos, com as inundações, a erupção de vulcões, as ondas de calor ou de frio, os temporais. Os males procedem da engrenagem das causas naturais, do acaso, das limitações do mundo, que as técnicas procuram superar na medida do possível. A maldade tem sua raiz na liberdade do homem – o mais valioso dele, mas também o mais perigoso; por isso, a maldade é gravíssima, em particular porque é “evitável”, porque está em nossas mãos não deixá-la brotar ou remediá-la e corrigi-la.”
p.169- “A perda principal, então e em outras conjunturas históricas, é a da autenticidade.”
p.181- “Só a abertura à realidade, a convicção de que esta é rica, fecunda, inesgotável, porque está repleta de possibilidades, podem antecipar o futuro e buscar uma imagem atraente para ele.”
p.181- “Não há nada mais “realista” do que a imaginação, que não consiste em “lançar ao ar” caprichosamente uma fantasia vaga, mas em prolongar com rigor e exigência os trações do que se encontra, que são inexorável ponto de partida.”
p.239- “Fala-se agora – demasiadamente – de “globalização”; sob essa palavra se oculta a falácia de que o mundo atual é uno. Não é verdade; há vários, não inteiramente comunicáveis, imperfeitamente compreensíveis; mas todos estão presentes e é preciso levá-los em conta.”
p.249- “O homem sempre teve recursos escassos para seus projetos; agora, pela primeira vez, grande parte do mundo tem mais recursos do que projetos, e o resultado é o tédio, o grande inimigo do homem, a grande ameaça. E disso deriva o “prosaísmo” que afeta grande parte da humanidade, ausência de um “lirismo” sem o qual a vida decai.”
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