"Desde mi punto de vista –y esto puede ser algo profético y paradójico a la vez– Estados Unidos está mucho peor que América Latina. Porque Estados Unidos tiene una solución, pero en mi opinión, es una mala solución, tanto para ellos como para el mundo en general. En cambio, en América Latina no hay soluciones, sólo problemas; pero por más doloroso que sea, es mejor tener problemas que tener una mala solución para el futuro de la historia."

Ignácio Ellacuría


O que iremos fazer hoje, Cérebro?

domingo, 10 de janeiro de 2010

Depoimento do historiador Tony Judt sobre sua doença!

São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

Noite

Totalmente dependente do cuidado de estranhos para realizar as necessidades mais básicas, como ir para a cama, Tony Judt, autor de "Pós-Guerra", se vê como o protagonista de "A Metamorfose", de Kafka

James Leynse/Corbis

O historiador Tony Judt em foto de 2002
TONY JUDT
Eu sofro de uma doença motora neurológica -no meu caso, uma variação da esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou doença de Lou Gehrig. As doenças motoras neurológicas não são incomuns: o mal de Parkinson, a esclerose múltipla e uma variedade de problemas menores cabem sob esse título.
O que é diferente na ELA -a menos comum dessa família de doenças neuromusculares- é, em primeiro lugar, que não há perda de sensação (uma bênção dúbia) e, em segundo, que não há dor.
Em comparação com quase todas as outras doenças graves ou mortais, ficamos à vontade para contemplar tranquilamente e com mínimo desconforto o avanço catastrófico de nossa própria deterioração.
Com efeito, a ELA constitui um aprisionamento progressivo sem liberdade condicional.
Em primeiro lugar, você perde o uso de um dedo ou dois; depois, de um membro; depois, quase inevitavelmente, dos quatro.
Os músculos do torso decaem a um quase torpor, um problema prático do ponto de vista digestivo, mas que também põe em risco a vida, já que a respiração torna-se primeiramente difícil e, depois, impossível sem ajuda externa, na forma de um aparelho com um tubo e uma bomba.
Nas variações mais extremas da doença, associadas a disfunções dos neurônios motores superiores (o resto do corpo é conduzido pelos chamados neurônios motores inferiores), torna-se impossível engolir, falar e até controlar o maxilar e a cabeça.
Eu (ainda) não sofro com esse aspecto da doença -ou não poderia estar ditando este texto. No meu atual estágio de decadência, portanto, estou efetivamente quadriplégico. Com um esforço extraordinário, consigo mexer um pouco a mão direita e puxar meu braço esquerdo cerca de 15 centímetros sobre o peito.
Minhas pernas, embora fiquem rígidas quando me levanto para um enfermeiro me transferir de uma cadeira para outra, não suportam meu peso e só uma delas ainda tem movimentos autônomos.


Você perde o uso de um dedo ou dois; depois, de um membro; depois, quase inevitavelmente, dos quatro


Intolerável
Assim, quando as pernas ou os braços são colocados em determinada posição, ali eles ficam até que alguém os movimente para mim. O mesmo vale para meu tórax, com a consequência de que a dor nas costas por causa da inércia e da pressão é uma irritação crônica.
Como não consigo usar os braços, não posso me coçar, ajustar meus óculos, retirar partículas de alimento dos dentes ou qualquer outra coisa que -como podemos confirmar em uma rápida reflexão- todos fazemos dezenas de vezes ao dia.
Resumindo, sou total e completamente dependente da bondade de estranhos (e de qualquer outra pessoa).
Durante o dia posso pelo menos pedir para que me cocem, ajeitem meus óculos, me deem de beber ou simplesmente reposicionem meus membros -já que a imobilidade forçada durante horas sem fim é não apenas fisicamente desconfortável como psicologicamente próximo do intolerável.
Não é como se você perdesse a vontade de se esticar, dobrar, levantar, deitar, correr ou se exercitar.
Quando a vontade o assalta, não há nada -nada- que você possa fazer, exceto buscar algum substituto mínimo ou encontrar uma maneira de suprimir o pensamento e a memória muscular que o acompanha.
Mas então vem a noite. Deixo a hora de dormir para o último momento compatível com a necessidade de sono de meu enfermeiro.
Depois que me "preparo" para dormir, sou empurrado para o quarto na cadeira de rodas em que passei as últimas 18 horas. Com certa dificuldade (apesar de minha altura, peso e volume reduzidos, ainda sou um peso morto substancial até para um homem forte movimentar), sou manobrado até meu leito.
Sentam-me em um ângulo aproximado de 110 graus e me escoram com toalhas dobradas e travesseiros, especialmente minha perna esquerda, que é virada para fora como no balé para compensar sua tendência a girar para dentro.
Esse processo exige uma considerável concentração. Se eu permitir que um membro seja mal posicionado ou não insistir que meu abdômen seja cuidadosamente alinhado com as pernas e a cabeça, sofrerei as agonias dos condenados durante a noite.
Então sou coberto, minhas mãos são colocadas para fora do cobertor para me dar a ilusão de mobilidade, mas envoltas de todo modo porque -como o resto do meu corpo- hoje sofrem uma permanente sensação de frio.


E lá fico eu: enrolado, míope e imóvel como uma múmia moderna, sozinho em minha prisão corpórea


Uma última coçada
Oferecem-me uma última coçada em qualquer ponto de uma dúzia de pontos suscetíveis, da cabeça aos pés; o aparelho de respiração Bi-Pap é ajustado ao meu nariz em um nível necessariamente desconfortável de firmeza para que não escorregue durante a noite; meus óculos são retirados...
E lá fico eu: enrolado, míope e imóvel como uma múmia moderna, sozinho em minha prisão corpórea, acompanhado pelo restante da noite apenas por meus pensamentos.
É claro que tenho acesso a ajuda, se precisar. Como não consigo mover um músculo, exceto a cabeça e o pescoço, meu equipamento de comunicação é uma babá eletrônica junto de minha cama, que fica permanentemente ligado para que um simples chamado meu traga ajuda.
Nas primeiras fases de minha doença, a tentação de chamar as pessoas era quase irresistível: cada músculo precisava de movimento, cada centímetro de pele coçava, minha bexiga encontrava modos misteriosos de se encher à noite e precisava de alívio, e em geral eu sentia uma necessidade desesperadora de ser tranquilizado pela luz, por companhia e os simples confortos do relacionamento humano.
Mas agora aprendi a dispensar isso na maioria das noites, encontrando consolo e alívio apenas em meus pensamentos.
Mas isso, embora eu mesmo esteja dizendo, não é tarefa fácil. Pergunte a si próprio quantas vezes você se mexe à noite. Não estou falando de mudar de lugar totalmente (como ir ao banheiro, mas isso também): simplesmente com que frequência você move uma mão, um pé ou coça diferentes partes do corpo antes de apagar; como, sem ter consciência, muda de posição ligeiramente para encontrar a mais confortável.
Imagine, por um momento, que você fosse obrigado a ficar deitado de costas absolutamente imóvel -que de modo algum é a melhor posição para dormir, mas a única que tolero- durante sete horas ininterruptas e obrigado a encontrar maneiras de tornar esse calvário tolerável não apenas durante a noite, mas pelo resto de sua vida. Minha solução é repassar minha vida, meus pensamentos, minhas fantasias, minhas memórias, meus enganos etc., até que encontre fatos, pessoas ou narrativas que eu possa usar para distrair minha mente do corpo em que está encapsulada.
Esses exercícios mentais têm de ser interessantes o bastante para prender minha atenção e me fazer superar a coceira intolerável no ouvido ou nas costas; mas eles também têm de ser entediantes e previsíveis o bastante para servir como um prelúdio e um incentivo ao sono. Levei algum tempo para identificar esse processo como uma alternativa funcional para a insônia e o desconforto físico, e de modo algum ele é infalível.
Mas às vezes me surpreendo, quando reflito sobre a questão, como pareço transpor com facilidade, noite após noite, semana após semana, mês após mês, o que já foi uma quase insuportável provação noturna.
Acordo exatamente na posição, no estado de espírito e na situação de desespero suspenso em que fui para a cama -o que nessas circunstâncias pode ser considerado uma conquista e tanto.


Essa existência de barata é cumulativa- mente intolerável


Humilhação
Essa existência de barata é cumulativamente intolerável, embora seja perfeitamente administrável. "Barata", é claro, é uma alusão à "Metamorfose", de Franz Kafka, em que o protagonista acorda certa manhã e descobre que foi transformado em um inseto.
O ponto principal da história são tanto as reações e a incompreensão da família dele quanto o relato de suas próprias sensações, e é difícil resistir à ideia de que nem o mais bem-intencionado e mais generoso amigo ou parente pode compreender a sensação de isolamento e aprisionamento que essa doença impõe a suas vítimas.
A impotência é humilhante até em uma crise passageira -imagine ou lembre uma ocasião em que você caiu ou por algum motivo precisou da ajuda física de estranhos.
Imagine a reação da mente ao saber que a impotência peculiarmente humilhante da ELA é uma condenação perpétua (falamos levianamente de penas de morte nesse sentido, mas, na verdade, esta seria uma libertação).
A manhã traz certo alívio; mas o fato de que a perspectiva de ser transferido para uma cadeira de rodas pelo dia inteiro possa animar nosso espírito diz muito sobre a jornada solitária através da noite!
Incomunicabilidade
Ter algo para fazer, no meu caso algo puramente cerebral e verbal, é uma distração salutar -mesmo que só no sentido quase literal de oferecer uma ocasião para comunicar-me com o mundo exterior e expressar em palavras, geralmente palavras iradas, as irritações e frustrações acumuladas da inércia física.
A melhor maneira de sobreviver à noite seria tratá-la como o dia. Se eu encontrasse pessoas que não tivessem nada melhor a fazer além de falar comigo a noite inteira sobre algo suficientemente divertido para nos manter despertos, eu as convidaria.
Mas, nessa doença, estamos sempre conscientes da necessária normalidade da vida dos outros: eles precisam de exercício, diversão e sono.
Então minhas noites lembram superficialmente as das outras pessoas. Eu me preparo para dormir; vou para a cama; levanto-me (ou melhor, sou levantado). Mas o tempo intermediário é, como a própria doença, incomunicável.
Suponho que eu deveria estar pelo menos um pouco satisfeito por ter encontrado em mim mesmo um mecanismo de sobrevivência que a maioria das pessoas normais só conhece por meio de relatos sobre desastres naturais ou celas "solitárias". E é verdade que essa doença tem suas dimensões positivas: graças a minha incapacidade de tomar notas ou prepará-las, minha memória -que já era bastante boa- melhorou consideravelmente, com a ajuda de técnicas adaptadas do "palácio da memória" descrito de modo tão intrigante pelo historiador Jonathan Spence.
Mas as satisfações da compensação são notoriamente fugazes. Não há graça salvadora em ser confinado a um terno de ferro, frio e inclemente.
Os prazeres da agilidade mental são muito exagerados, inevitavelmente -como agora me parece-, por aqueles que não dependem exclusivamente deles.
O mesmo se pode dizer dos incentivos bem-intencionados para encontrarmos compensações não-físicas para a incapacidade. Isso é inútil. Uma perda é uma perda, e nada se ganha por chamá-la de um nome mais bonito. Minhas noites são intrigantes; mas eu poderia passar sem elas.


Este texto saiu no "New York Review of Books". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Nenhum comentário: