“A revolução técnico-científica questiona o capitalismo”
por jpereira — Última modificação 07/01/2008 10:48
Vania Bambirra, uma das formuladoras da Teoria da Dependência, analisa as transformações na América Latina e a impossibilidade de o capitalismo resolver as contradições sociais
07/02/2008
Jorge Pereira Filho,
do Rio de Janeiro (RJ)
As frases são carregadas de conteúdo não só discursivo. Têm emoção, histórias. Trajetória de quem além de pensar sobre a dependência, foi testemunha e participante. Vânia Bambirra chegou ao Chile exilada. Ao lado de intelectuais, como Rui Mauro Marini, Andre Gunter Frank, Theotônio dos Santos, formulou a Teoria da Dependência, uma leitura marxista, crítica, não-dogmática, dos processos de reprodução do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo.
Em 1961, inscreveu-se com um grupo de intelectuais, entre eles Theotônio, como voluntária para defender a revolução cubana. Participou da Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-Polop), organização que lutou contra o regime militar de 1964. No Chile, integrou o Centro de Estudos Sócio-econômicos (CESO) com um grupo de marxistas que desenvolveu uma nova leitura da realidade latino-americana. Elaboraram um instrumental analítico da realidade que influenciou o programa da Unidade Popular, partido de Salvador Allende, eleito presidente em 1970. Três anos depois, assiste o assassinato do primeiro presidente de esquerda eleito democraticamente em um golpe de Estado promovido pelas forças militares, com apoio dos Estados Unidos. Novo exílio, dessa vez no México, onde leciona na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Volta ao Brasil apenas nos anos de 1980.
Mais conhecida na América Hispânica do que no próprio Brasil, tem apenas dois livros publicados em terras tupiniquins. Ainda não se encontra nas livrarias uma de suas mais famosas obras, “A Revolução Cubana – uma reinterpretação”, tido como um dos melhores trabalhos produzidos fora de Cuba sobre o processo revolucionário. Hoje vive no Rio de Janeiro, com sua filha e seu neto. Em entrevista ao Brasil de Fato, concedida no final de novembro, Bambirra expõe suas idéias sobre os processos capitalistas contemporâneos, as transformações na América Latina e a decepção com o governo Lula.
QUEM É
Vânia Bambirra é cientista política formada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Economia pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). De 1991 a 2000, foi Chefe da Assessoria Técnica da Liderança do PDT na Câmara dos Deputados, partido do qual não é mais filiada.
A Teoria da Dependência foi formulada na década de 1960. O que mudou hoje na relação dos países da América Latina com o resto do mundo?
Vânia Bambirra – É preciso dizer que a Teoria da Dependência, que surgiu nos anos 1960, sofreu um baque com o golpe do Chile (1973). Foi muito criticada porque teria influenciado o governo de Salvador Allende; de fato, influenciou o seu programa. E seus críticos diziam que, assim como a experiência fracassou, a Teoria da Dependência teria tido o mesmo destino. Ela entrou em uma crise, não houve mais produção a partir a partir de então. E ela não captou as mudanças que ocorreram nos 1980. O que aconteceu depois? (Ronald) Reagan teve dois mantados (1980-1988) e consolidou o neoliberalismo na América Latina. A Teoria da Dependência não processou essa fase porque já estava em baixa. O próprio Rui Mauro Marini faz reflexões em vários artigos, mas não há uma análise profunda e sistemática do neoliberalismo. O mundo mudou, sim. O imperialismo transformou o mundo globalizado. A globalização é uma palavra moderna para esse fenômeno.
Você entende que hoje está em curso uma redivisão internacional do trabalho, com China e Índia assumindo um papel mais fabril no mercado global e os outros países passando por uma espécie de desindustrialização?
Não acho que seja por aí. O que ocorre é o processamento da revolução científico-tecnológica que em alguns países está muito mais avançado do que em outros. No caso da Índia, do ponto de vista de informática, está muito avançado. Eles exportam mão-de-obra. E, ao mesmo tempo, é um país atrasadíssimo. Uma miséria massiva, uma marginalização da maioria que não sabe ler, escrever. Essa realidade convive com um setor de elite. O problema é muito grave porque a revolução científico-tecnológica conduz inexoravelmente a um questionamento do capitalismo. É uma revolução típica nem de uma sociedade socialista, mas sim comunista, porque tira a mão-de-obra do processo produtivo, coloca a ciência como principal força produtiva. É a contradição absoluta que o capitalismo não pode resolver. A mais-valia vem da exploração do trabalho humano, e não dos robôs, de cérebros eletrônicos. O capitalismo é reacionário porque não pode produzir progresso. E o socialismo como etapa de transição, que não é uma sociedade sem classes, pois conserva elementos fundamentais do capitalismo e até por isso que entrou em crise, também foi incapaz de trazer esse progresso. Esse é o grande problema do mundo que está aí. E que sem um instrumental marxista as pessoas não conseguem entender. São contradições que vão se acirrando. As forças produtivas querendo se desenvolver e, ao mesmo tempo, impossibilitadas de se desenvolver porque o capitalismo tem de manter a exploração do ser humano.
Reacionário no sentido de não permitir a ampliação dos avanços das forças produtivas?
A tendência é se acabar com o trabalho humano, que é o que gera mais-valia. Mas, sem isso, não há como o capitalismo sobreviver.
E a resposta do capitalismo é a massa desempregados?
Claro, e esses problemas absurdos de segurança. Eu dizia na sala de aula: se visse um filho meu com fome, eu roubava. É uma questão de sobrevivência do ser humano. Isso é uma caricatura que tenho coragem de dizer. O que está acontecendo com nossa população marginalizada, os pobres que não têm sequer acesso ao trabalho? Essa população quer sobreviver, é um instinto, e para isso tem de se alimentar.
O ingresso de massas trabalhadoras nos parques industriais da China e da Índia e a redução do trabalho operário na Europa, nos países centrais, trazem mudanças no conceito de superexploração?
Traz, evidentemente. Na China, por exemplo, essas massas que deixam o campo e vão para as cidades recebem salários irrisórios. Por que as coisas feitas na China são tão baratas? Porque há uma intensificação da superexploração. Remunera-se o trabalho muito abaixo. É uma hipersuperexploração. Quanto é o salário de um trabalhador na China? 30 dólares? Vão surgindo nesse país, que foi socialista, as mazelas típicas das sociedades capitalistas. É uma população que não estava acostumada com isso. Por que na Rússia, na Alemanha e em ex-repúblicas socialistas começa a surgir um saudosismo daqueles velhos tempos? Isso se manifesta, claro, entre os mais idosos. Mas é muito significativo isso. Porque a hecatombe foi em 1990, não foi há tanto tempo assim. Eles vivem uma sociedade de consumo, mas não podem desfrutar dela.
Uma pesquisa feita na antiga Alemanha Oriental mostrou exatamente isso: 92% dos mais velhos (35 e 50 anos) preferem o comunismo ao atual capitalismo; entre os mais novos, 60% disseram o mesmo.
Quando eu morava no México, um amigo cubano veio me visitar durante um congresso e, quando chegou, viu aqueles hipermercados, com prateleiras imensas. Ele ficou deslumbrado. No dia seguinte, me disse que não dormiu direito, sonhou com aquilo. E me contou: “Mas, pensando bem, eu acho que nós cubanos não temos do que nos queixar. O que adianta ter tudo aquilo se para adquirir qualquer coisa eu preciso de dinheiro”. Você vê tudo o que você pode consumir, mas só tem acesso a uma ínfima parte.
As senhora acredita que há alguma forma de superar essa etapa neoliberal nos marcos do próprio capitalismo, como a reativação do Estado de bem-estar social, o neokeynesianismo?
Nenhuma viabilidade. Como é que vai superar, se o progresso vai na direção de superar o trabalho humano? É nesse sentido que o capitalismo é reacionário, porque precisa do trabalho humano. E o socialismo tampouco conseguiu essas respostas. Veja bem, Marx, os clássicos, pensavam o socialismo em uma sociedade desenvolvida. Foi uma audácia fazer a Revolução Russa. Os bolcheviques foram muito atrevidos, porque ousaram tomar o poder e tentar construir o socialismo em uma sociedade cheia de vestígios feudais que não tinha tido um desenvolvimento suficiente do capitalismo. A Rússia era muito atrasada. E ainda mais grave: foi um país cercado, bloqueado, dizimado fisicamente, invadido pelos países desenvolvidos europeus. A infra-estrutura incipiente capitalista que existia lá foi fisicamente destruída. Começou-se a construir sob os escombros. Então era para dar no que deu, todo mundo torcia que não. Era uma epopéia incrível. O socialismo completa quase 100 anos. E quantos anos o capitalismo demorou para se desenvolver? O socialismo ainda é uma experiência muito rudimentar, frágil, porque triunfou em países muito débeis.
Como em Cuba?
Sim, veja bem, o socialismo cubano é um socialismo heróico. Mas ele se manteve porque teve ajuda soviética. Sem isso, Cuba seria inviável. Uma ilha não só no sentido físico. Era atrasada, o cabaré dos Estados Unidos. Que viabilidade tinha para construir o socialismo ali? E, contudo, Cuba existe, está lá. Precisou da ajuda soviética, veio a hecatombe em 1990, Cuba continuou sobrevivendo. Buscou formas de negociar o que tinha, açúcar, charuto. E foi sobrevivendo, e o povo se sacrificou. Sem nenhuma dúvida. A concepção do socialismo não é a generalização da miséria. O que o socialismo quer e sobretudo a etapa superior, o comunismo, é que todas as pessoas possam usufruir das benesses. Todo mundo quer comer bem, presentear seus amigos, andar com bons meios de transportes. A pessoa quer viver bem. E em uma sociedade capitalista isso é um luxo, só poucos podem ter. Na sociedade do futuro, a idéia é que todos tenham tudo isso. Essa é a utopia marxista. O problema é que até agora o socialismo triunfou em outros países. Já pensou uma revolução socialista na Inglaterra? Ou na Alemanha?
Como a senhora coloca a questão do consumismo nisso? Por exemplo, fala-se que seria inviável expandir para o planeta o padrão de consumo estadunidense ou europeu.
O modelo de vida da maioria dos americanos, e a maioria é classe média, é modesto. Não vamos esquecer que os Estados Unidos têm milhões e milhões de miseráveis, sendo o país mais rico do planeta. Vamos falar da classe média americana. Eles têm um modelo de vida muito restrito, muito medíocre. Nova York é uma cidade violentíssima, muito perigosa, com níveis de violência que não fazem inveja ao Rio de Janeiro. Entre no Central Park à noite para ver o que ocorre. A maior parte dos americanos tem uma vida medíocre, mas vive no país mais rico do mundo. É um absurdo. É um povo que não usufrui em sua maioria das riquezas que o sistema produtivo conquistou.
Na América Latina, discute-se o socialismo do século 21. No entanto, esses processos não tem seguido os processos tidos como padrão de movimentos revolucionários, como a criação de um partido de massas, a formação política do povo...
É muito interessante o que está acontecendo hoje. Todos foram eleitos, Evo (Bolívia), Rafael (Equador), Chávez (Venezuela)... Eu fico entusiasmada, mas com um pé atrás. A gente tinha muita esperança em Allende, que também foi eleito, sobretudo porque a direita se dividiu naquela época. Bolívia, Equador e Venezuela são os três casos mais impactantes, mas estão ocorrendo fenômenos de questionamento da ordem também quando se elege na Nicarágua um antigo sandinista. Eu acho que o povo está querendo mudança.
E o Lula?
Isso é a continuidade de Fernando Henrique, é o neoliberalismo, sim. E aí eu acho mais inconcebível. Não sou moralista, não vou entrar na história de “mensalão”, corrupção, isso é secundário. O que é substantivo é a amizade que ele tem com Bush. Eu votei nele e não votei num cara que iria ser o amiguinho número 1 do Bush. Não votei em um cara que quer transformar o campo brasileiro em zona de produção de agrocombustível para abastecer os Estados Unidos. Tirar comida da boca do povo brasileiro para dar combustível para os países desenvolvidos? Isso não.
Essa política focada na agroexportação reconduz o país a uma condição primário-exportadora?
Não, não acho. O parque industrial brasileiro é fantástico, apesar de o Fernando Henrique ter tentado sucatear tudo. O Brasil produz aviões; equipamentos de prospecção submarinas de petróleo em águas profundas. Isso é um produto de tecnologia de ponta. É diferente da Venezuela, por exemplo, que tem de importar tecnologia. Brasil, México, Argentina, Chile e Uruguai têm mais autonomia. Romper a dependência, para essas nações, é uma questão política. O socialismo seria muito menos doloroso no Brasil, México e Argentina do que no Equador, Bolívia e Venezuela. Mas é lá que está ocorrendo o fenômeno. Porque nesses países as contradições se tornaram incontroláveis. O sistema está invertido.
A senhora acha que esses países caminham para uma saída mais desenvolvimentista ou para uma transformação mais radical?
Olha, o ritmo da radicalização é marcado pela contra-revolução. Assim foi em Cuba. É contra-partida. Se a direita avança, força esse processo. Isso está ocorrendo assim na Bolívia, querem tornar independentes as regiões mais ricas. Não somos nós que definimos o ritmo das mudanças. E como quem é proprietário privado nunca vai abrir mão, a tendência é sempre essa, de radicalização. Já vimos esse filme antes. O Evo vai chegar a um ponto em que precisará entregar ao povo as defesas daquilo que conquistou. As respostas a gente já conhece. E nenhum processo avança se não tem a confiança do povo em definitivo. Em Cuba, por exemplo, se a população quisesse depor Fidel Castro, tinha feito isso. Mas eles o adoram. Saúde de altíssimo nível, escola, comida, mesmo que racionada, porque é um país que importa alimentos, não produz. Não há uma abundância generalizada em Cuba.
Cuba vive hoje um debate interno, impulsionado por Raúl Castro, no qual a população está opinando sobre os rumos da revolução...
Com a enfermidade do Fidel Castro, os Estados Unidos têm a expectativa de que ele morra e de que o país vai mudar. É exatamente nesse momento que Cuba tem espaço para abrir mais. Sempre houve consulta popular. O problema é que parece inacreditável que o povo adore Fidel. Isso não se transfere para Raul, mas ele não pensa diferente de Fidel. Tenho só a impressão de que está atuando sem tanta pressão.
Ainda sobre o mundo socialista, há pesquisadores que apontam a existência de um suposto imperialismo soviético sobre as outras repúblicas socialistas...
Essa é uma visão de direita. A questão é que a União Soviética salvou Cuba; sem o petróleo, a revolução não teria sucesso. Para os soviéticos, interessava o sucesso da revolução. Mas é óbvio que, junto com esse apoio, veio toda um influência. Os cubanos passaram a adotar típicos manuais soviéticos nas universidades. E foram assimilando certas mazelas do sistema soviético. Isso é inquestionável. Foi um período terrível, à beira de uma guerra nuclear. A primeira vez que fui a Cuba foi em 1963. Eu conheci intelectuais cubanos que tinham uma independência muito grande em seu pensamento. Claro, não podiam expressar isso. Uma revista como Pensamiento Crítico acabou fechada, o que foi terrível, muito ruim. Mas foi um preço alto que se teve de pagar pela manutenção da revolução cubana. Um preço alto. Valeu a pena? Eu acho que valeu. Porque o exemplo de Cuba está aí e é onde a Venezuela se inspira. A bandeira do socialismo está lá hasteada, em uma ilha. O país tem uma das melhores taxas de mortalidade infantil do mundo, está exportando médicos, acabou a miséria.
Voltando ao Brasil e ao governo Lula. A senhora acha que, levando em conta tamanha a presença do capital internacional no país, haveria espaço político para um governo caminhar para uma ruptura?
Eu acho que sim, e acho também que Lula exerce um papel um pouco de ópio do povo. O Bolsa Família, que chega aos grotões, no Nordeste inteiro, dá uma miséria. Mas o povo precisa. O problema é que o Lula com isso está se transformando em um baita populista, assistencialista, difícil derrotar. Sou pessimista a curto prazo, acho que o PSDB ganhará as eleições. Mas, a médio prazo, sou mais otimista. O problema é que não temos uma alternativa de esquerda viável. A burguesia brasileira é de alto nível. Dão aqueles minutos de televisão e o povo não vota em desconhecido. O candidato do partido pequenininho fica com essa votação mínima. Se a gente lançar uma candidatura de esquerda mesmo, o povo não vai conhecer.
E como a senhora entende, hoje, a questão dos partidos?
Eu acho fundamental. Não sou dinossauro, nem nada, cabeça bem aberta, tentando analisar as coisas objetivamente. Partido é um grande instrumento para se formar quadros, organizar militância. Partido nada mais é do que um instrumento, mas um instrumento muito importante de organização do povo. Senão caímos no anarquismo, o que não leva nada em nenhum lugar. Os anarquistas tinham uma força histórica tremenda no começo do século no Brasil, fizeram greves sensacionais, mas levaram alguma coisa? Não levaram nada. Na revolução mexicana, o Pancho Villa e Emilliano Zapata tomaram o Zócalo (praça central da Cidade do México, onde fica o Palácio Nacional, sede do governo), tiram fotos e, depois, vão embora. Não tinham o que propor para o conjunto da sociedade. O partido é muito importante. Não o operário, vamos modernizar essa concepção, mas sim um partido que englobe todas as forças progressistas.
Você falou do México. Há uma frase muito famosa do subcomandante Marcos, “O poder está vazio”, pela qual ele se referia às limitações hoje do Estado capitalista, no sentido de que os governos estão tão amarrados com os instrumentos jurídicos e econômicos que tomar o poder não é uma finalidade...
Mas então qual é a finalidade? Sem esse poder, não se faz nada. Foi a grande discussão que se teve no Chile, na época do governo Allende. “Nós não tomamos o poder, chegamos ao governo”. O poder não é o governo, são as instâncias. O governo é o Executivo. Você tem o Legislativo, o Judiciário, os movimentos sociais, as Forças Armadas, uma série de instâncias que conforma o poder. Você tem de controlar isso para tomar o poder. Sabemos que precisamos destruir esse poder para construir um outro, socialista. Mas isso não se faz do dia para a noite. Tarefas construtivas coexistem com um processo de destruição. O desafio é construir uma nova sociedade. Quando você tiver se apoderado das partes cruciais, dos eixos, aí sim você vai poder mudar. Mas com as armas na mão também. Porque nenhum poder se mantém sem armas na mão. Eu já vi muita história ser derrotada quando estávamos com arma na mão, mas com menos armas que os outros. No golpe de 1964, a Marinha dos Estados Unidos estava em nossa costa. Não desembarcaram porque não precisou. Esse é um período em que estamos questionando muitas coisas, mas os pontos cruciais postos pela experiência revolucionária são os mesmos.
Que lembranças você tem dos anos 1960 em termos de luta, militância e atividade?
A lembrança dos anos 1960. Para destacar algo, eu me lembro muito do grupo de pesquisa na Universidade do Chile, onde elaborávamos em debates a Teoria da Dependência. E a minha melhor lembrança é a do Rui Mauro Marini, um intelectual brilhante. Organizamos um seminário de leitura do Capital. Eu já tinha lido, mas individualmente. A leitura coletiva é mais rica. Foi um contato muito marcante, do ponto de vista acadêmico e político.
E como a senhora avalia hoje a relação entre a questão de gênero e luta de classes?
Há muito tempo, eu escrevi em um artigo que a mulher trabalhadora tem a dupla jornada – um emprego fora e os afazeres domésticos – e é duplamente superexplorada em um ambiente social e doméstico. Por isso, eu acho que ela tem uma dupla razão para ser revolucionária e transformar esse sistema. Tem um potencial de luta fantástico. Mas o machismo é uma coisa muito forte. Na Revolução Cubana, por exemplo, a Vilma Espín e outras mulheres eram para ser mais destacadas. Elas foram destacadas apenas por serem mulheres. A Vilma Espín era mulher do Raul. Virou presidente da Federação de Mulheres Cubanas. Ela pegou em armas, tinha capacidade estratégica. Em uma pesquisa, uma vez, eu a entrevistei e fiz isso também com outras comandantes cubanas, salvadorenhas... As mulheres tiveram posições cruciais nas revoluções, mas desaparecem da história.
Os dois governos de Fernando Henrique colocaram em prática as idéias proposta do debate que ele tinha com Rui Mauro? Você conviveu com ele, no Chile...
A Teoria da a Dependência de Fernando Henrique nunca foi marxista, ele conhecia o marxismo, mas sempre foi weberiano. Quando eu o conheci no Chile, uma coisa interessante é que ele nunca discutia nada político; apenas o acadêmico. Ele freqüentou minha casa no Chile, cheguei a me despedir dele no aeroporto quando fui embora do país. Ele falava em sociologia o tempo todo, era um chato. Quando voltei ao Brasil, ele veio jantar conosco e era senador. Mas eu acho que ninguém esperava que fosse fazer um governo tão neoliberal, tão traiçoeiro. Entregar todas as jóias da Coroa, as empresas nacionais, lucrativas. Entregar tudo a preço de banana, literalmente. O que ele fez com a Vale do Rio Doce? Eu chorei quando ele vendeu a empresa, trabalhava em uma assessoria técnica na Câmara dos Deputados. Eu não esperava que chegasse a esse ponto de ser tão reacionário. Mas queria encerrar a pergunta afirmando o seguinte: tive decepção com Fernando Henrique, sim; mas tive mil vezes mais decepção com o Lula. O Fernando Henrique eu sabia que não era um cara de esquerda, era um cara progressista à época. Um liberal-progressista. Mas o Lula era do PT; claro, eu sempre fiz crítica ao PT, mas era um operário e terminar como amigo do Bush? Seguir uma linha tão entreguista? É o fim.
Obras de Vânia Bambirra
Português
A teoria marxista da transição e a prática socialista. Brasília, Editora da Universidade de Brasília (1993).
Cuba – 20 anos de cultura (Entrevistas). (1983).
Espanhol
La estrategia y táctica socialista: de Marx y Engels a Lenin. Em co-autoria com Theotônio dos Santos, Era, México, 2 tomos (1980-81).
Teoria de la dependencia: uma anticritica. Era, México (1977).
Integración monopólica mundial e industrialización. Universidade Central de Caracas,
Caracas Venezuela (1974).
La revolución cubana: uma reinterpretación. Prensa Latino-Americana, Santiago do Chile (1973). Nuestro tiempo, México (1974); Centelha, Coimbra, Portugal (1977); Otsuky Shoten, Tóquio (1981).
El capitalismo dependiente latinoamericano. Prensa Latino-Americana, Santiago do Chile (1972); Feltrinelli, Milão (1974); Sigilo XXI, México (1974).
Diez años de insurrección en America Latina. Prensa Latino-Americana, Santiago do Chile (1971); Mazotta, Milão (1973).
América Latina: história de medio siglo, organizado por Pablo Gonzalez Casanova, Siglo XXI, México (1978). Reeditado pela editora UnB, Brasília (1988).
El control político del Cono Sur, organizado pela Casa do Chile e pelo ILDES, Siglo XXI, México (1978).
América Latina: dependencia y subdesarrollo, organizado por Antonio Murga e Guilherme Boils, Editorial Universitária Centroamericana, São José da Costa Rica (1973).
Imperialismo y dependencia, Cadernos do CESO, Santiago do Chile (1969).
Las relaciones de dependencia en America Latina: Bibliografia, CESO, Santiago do Chile (1968).