RELATO DE VISITA AOS DESABRIGADOS DO MARANHÃO
por José Magalhães de Sousa
Assessor Nacional da Cáritas Brasileira
“As enchentes ocorridas ao longo desses últimos meses têm deixado situações marcantes, de grande sofrimento. Mas, graças a Deus, existem diversas ações que mobilizam a população para a solidariedade, e devido a estas atitudes o sofrimento do povo se torna mais ameno. Nesta oportunidade destaco a contribuição da Cáritas Brasileira, que vem se fazendo presente na vida desses filhos e filhas de Deus”.
(Ir. Alessandra - Cáritas Diocesana de Bacabal - MA)
O Maranhão foi, sem dúvida, um dos estados mais castigados pela tragédia das enchentes de 2009: foram 13 vidas ceifadas; 95 cidades em situação de emergência; 367.005 pessoas afetadas, 44.405 desabrigados; 80.087 desalojados, segundo dados da Defesa Civil. Há quase 60 dias, 30 mil alunos da rede pública estadual não têm aulas.
No período de 26 a 31 de maio, agentes da Cáritas Brasileira Regional Maranhão, juntos com o assessor nacional José Magalhães de Sousa, percorreram várias regiões do estado, visitando áreas alagadas, abrigos, famílias desalojadas, equipes locais de Cáritas.
Nesta visita pudemos presenciar o retrato real de uma catástrofe: uma situação extremamente crítica, de violação a todo tipo de direitos da pessoa humana, negligência total do poder público, milhares de pessoas amontoadas em abrigos, sem água, sem luz, sem banheiros, sem comida, mulheres grávidas, outras dando à luz nos abrigos, senhoras idosas de até 90 anos, crianças, muitas crianças, em situação de nudez e mal alimentadas, bebês sem banhos há dias, muitos pais e mães de famílias desolados, esperando o dia em que as águas permitam contemplar o que restou ou o que não restou de suas casas.
Foto: José Magalhães de Sousa: Família alagada em Viana - MA
As estradas estão em péssimas condições, com verdadeiras crateras abertas em todos os trechos. Os 250 quilômetros que separam a capital São Luís das regiões mais atingidas são percorridos, de carro, em até cinco horas, sempre debaixo de muita chuva.
As primeiras áreas a serem visitadas foram os municípios de Viana e Cajari, banhadas pelos rios Pindaré e Maracu. Bem perto, no município de Arari, passa o Rio Mearim. A confluência desses rios na região baixa, de enormes planícies, com as águas vindas dos igarapés, aumenta o volume de água que se espalha por toda a planície, como se formasse um enorme pantanal. Búfalos e bois criados na região são obrigados a migrar para outras regiões, ou morrem afogados.
Foto: José Magalhães de Sousa. Alagados em Cajari – MA
Nessa região, a maioria dos desabrigados está em Cajari, amontoados em colégios, salões de igrejas e numa associação do município. Juntamente com a equipe de Cáritas Diocesana local, pastorais sociais e Fórum de Cidadania, foram organizadas e distribuídas, na ocasião da visita, 66 cestas básicas e 66 kits de limpeza[1].
Outro município visitado foi Bacabal. Ali, na parte baixa da cidade, chamada de Trizidela (não confundir com outro município atingido), as casas ainda estão submersas. O maior dos mais de trinta abrigos formados na cidade fica no parque de exposição de animais da cidade, onde existem cerca de mil pessoas amontoadas. A lona preta que separa os compartimentos onde ficam até seis famílias juntas contribui para aumentar mais ainda o calor de quase 40 graus. Não há latrinas, nem banheiros químicos. Sequer há mato para as necessidades fisiológicas, que são feitas ao relento. O mau cheiro é terrível. As pessoas desabrigados reclamam da falta de água; só existem quatro torneiras que nem sempre têm água; à meia noite, quando a água chega a essas torneiras, filas enormes se formam em busca de um balde de água para as necessidades básicas e para cozinhar.
Seguimos para Pedreiras e Trizidela do Vale (homenagem a João do Vale, ilustre filho da cidade). As duas cidades estão separadas apenas pela ponte do rio Mearim. Trizidela do Vale, porém, é, de longe, o mais castigado de todos os municípios maranhenses atingidos pelas enchentes. Dos seus 14 mil habitantes, 12 mil foram afetados. Praticamente, tudo tem que ser reconstruído. As águas baixaram e as famílias começam a voltar para suas casas – aqueles que tiveram a sorte de não ter a casa totalmente destruída. Muitas famílias foram desalojadas duas ou até três vezes, passado de um lugar a outro, à medida que as águas iam atingindo níveis cada vez mais altos.
Em Pedreiras, no diálogo com os padres da Paróquia de São Benedito, tomamos conhecimento da existência de um Comitê SOS Enchentes, formado por empresários, funcionários dos Bancos existentes na cidade (Banco do Brasil, Caixa Econômica e Bradesco), Exército, Defesa Civil, Prefeitura, Igrejas, etc. Além de deflagrar uma campanha de donativos, o Comitê teve importante papel no deslocamento e alojamento das famílias desabrigadas. Na própria paróquia encontravam-se cerca de 700 cestas básicas compradas com recursos da campanha local. O salão paroquial está lotado de famílias.
Do outro lado do Rio Mearim, em Trizidela do Vale, a paróquia de Santo Antonio abriu as portas aos desabrigados. Não há um só espaço, com exceção da capela, que não esteja ocupado: salão paroquial, quadra de esporte, colégio, etc. São mais de mil pessoas. Ali encontramos um grupo do Exército e agentes da Defesa Civil de São Luís, com equipes que permanentemente se revezam no local. Médicos, enfermeiros e dentistas fazem atendimento aos desabrigados. O frade franciscano Frei Ribamar, vigário da paróquia, mostrava-se incansável, com sua equipe paroquial, levando conforto e concedendo aos desabrigados condições mínimas de sobrevivência.
O último município a ser visitado foi São Luiz Gonzaga do Maranhão, um dos mais pobres do estado. Ali também o Rio Mearim desabrigou todos os que moram às suas margens e nas partes baixas da cidade. A paróquia e a Prefeitura formaram parcerias para o atendimento aos desabrigados que já começam a voltar para suas casas.
Foto: José Magalhães de Sousa. Alagados em Viana-MA
Qual é o rosto do desabrigado que encontramos? Sem dúvida, o rosto dos mais pobres: habitantes de casebres às margens do rio ou em áreas de risco, casas de barro, de chão batido em sua maioria; vivem de pesca artesanal, do oficio de canoeiros, de pequenas agriculturas, ou de prestação de serviços, quando existem. Casas de alvenaria, sem estrutura sólida, foram abaixo por completo; casas de taipa se dissolveram, restando uma montoeira de lama e o “esqueleto” a ser revestido de barro novamente. Muitos desses moradores resistem em sair de suas casas, mesmo sabendo que num próximo ano tudo poderá acontecer de novo. Além do amor próprio pela residência conseguida com o suor do rosto, ali ele estará perto do seu ganha-pão, da pesca, ou do transporte da canoa. É o rosto da família que vive em constante vulnerabilidade. As enchentes só agravam mais e mais a situação de quem já vive em permanente estado de emergência.
Segundo os desabrigados, a fase mais difícil está acontecendo exatamente nesse momento, quando é chegada a hora de voltar e ver a casa imunda ou destruída por completo, sem absolutamente nada dentro. Perdeu-se tudo, menos a esperança de recomeçar. Perguntados sobre as maiores necessidades do momento, o alimento vem em primeiro lugar, depois o barro para pelo menos tapar as paredes destruídas e dar condições de moradia, ainda que provisória.
O lado menos visível (e não menos complicado) dessa história são as comunidades rurais isoladas, que vivem das pequenas lavouras, da plantação de mandioca e criação de pequenos animais. Em muitas comunidades rurais, as perdas na agricultura são totais. Não há o que recuperar. “Será um ano de fome” disse um dos desabrigados, por conta da perda das plantações.
A Cáritas Brasileira Regional Maranhão e Cáritas locais estão trabalhando no atendimento imediato, com recursos de doações das comunidades, colégios e paróquias de São Luis, recursos da CRS/USAID, recursos da Campanha SOS Norte Nordeste e da Cáritas Alemã e do Governo da Alemanha. Pelo menos três mil famílias serão beneficiadas, nos próximos dias, com alimentos, kits de limpeza, kits de higiene pessoal e kits para dormir (redes, lençóis, mosquiteiros).
Uma vez baixadas as águas, restará um mundo a reconstruir. Os maiores desafios de uma ação de atendimento emergencial como essa ainda estão por vir. Mais do que favorecer condições imediatas de retorno às suas moradias, é preciso dar um grito de socorro que ecoe aos quatro cantos do país até que alguém escute; é preciso tomar as dores dos que sofrem invisivelmente. O nosso papel enquanto Cáritas e enquanto Igreja é de fazer chegar esse grito a quem de direito, cobrar políticas públicas, ações duradouras, de garantia dos direitos, de habitações seguras, de condições mínimas de vida digna de seres humanos. Do contrário, ano após ano, acontecerão novos desastres cada vez mais graves, sem dúvida. Uma vez destruída, a natureza não perdoa.
Foto: José Magalhães de Sousa. Equipe Caritas Regional e Cáritas Diocesana de Viana organizam as ações
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[1] Cada cesta básica compreende cinco quilos de arroz, dois quilos de feijão, dois quilos de farinha, um litro de óleo, um quilo de macarrão, meio quilo de leite, três latas de sardinha, um quilo de sal, dois pacotes de biscoito água e sal, dois pacotes de fubá de milho, dois quilos de açúcar e um quilo de café. Cada kit de limpeza contém duas vassouras, dois baldes, dois panos de chão, dois litros de água sanitária, dois pacotes de sabão, cinco barras de sabão em pedra, um desinfetante e quatro rolos de papel higiênico.
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