Lobbies e desinformação dominam discussão sobre biocombustíveis
Escrito por Valéria Nader
06-Dez-2007
Na esteira de uma crise ambiental planetária que se alarga e se evidencia a cada dia, chamando a atenção de muitos que até então viam nas advertências de cientistas nada mais do que mero alarmismo, os biocombustíveis tornaram-se um dos grandes focos de discussão.
Para uns, trata-se de excelente solução para a poluição do planeta, na medida em que constituem uma fonte de energia limpa, evitando a eliminação dos gases de efeito estufa advindos da queima dos combustíveis fósseis. No Brasil, então, não haveria como não adotá-los, vistas as enormes extensões de terra passíveis de serem cultivadas com a cana-de-açúcar e as louváveis condições naturais para esse cultivo.
Do outro lado, críticas contundentes. Minoram-se os ganhos energéticos, que deveriam ser relativizados pelas condições sob as quais se cultiva a cana. Alerta-se ainda para a degradação do meio ambiente; o reforço da monocultura e da concentração das propriedades, em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos; a submissão da força de trabalho a condições desumanas; e a reduzida geração de empregos.
Não é preciso ser especialista para observar a panacéia atual em torno ao etanol. Basta viajar pelo interior do estado de São Paulo para constatar uma nítida e brutal mudança na paisagem, em espaço curtíssimo de tempo, onde a predominância das plantações de cana-de-açúcar é absoluta. Adentrando-se por estradas vicinais, é possível ainda visualizar alojamentos precários recém construídos, muito provavelmente para abrigar os novos cortadores. Ademais, vários noticiários dão conta da elevação do preço da terra nesse último ano e, não coincidentemente, da febre na aquisição de terras e usinas destes trópicos por investidores estrangeiros.
Obviamente, grandes interesses estão em jogo e muitos lobbies, em ação. Para que, ao final, quiçá acabe por valer os interesses da nação, há que se qualificar uma discussão tão polarizada, destrinchando os argumentos de ambas as partes - mas tomando-se certamente em consideração que sempre há aquela que tem sua cadeira cativa nos grandes veículos.
Tamás Szmrecsányi, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, uma voz rara em nossa imprensa, falou longamente ao Correio da Cidadania sobre o tema.
Nessa primeira parte de sua entrevista - publicaremos mais duas partes -, ele avalia as atuais discussões em torno dos biocombustíveis, a sua eficiência energética e os argumentos críticos a essa fonte.
Nas próximas duas partes, Tamás discorre sobre as ponderações dos defensores dos biocombustíveis, sobre as alternativas à sua produção e também a respeito da postura do governo e dos movimentos sociais.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Como o senhor avalia a atual discussão em torno dos biocombustíveis, em especial o etanol, no Brasil e no mundo?
Tamás Szmrecsányi: Limitarei minhas respostas ao álcool (ou etanol, ou biocombustível), um assunto que conheço melhor. Por não me julgar, por outro lado, suficientemente entendido em plantas oleaginosas e em biodiesel, prefiro abster-me de opinar a respeito.
Em primeiro lugar, no que se refere às discussões em curso, convém distinguir entre as que são veiculadas pela mídia e as travadas em círculos acadêmicos e técnicos mais fechados. Nas primeiras, campeia a desinformação, tanto aqui, quanto lá fora, geralmente por falta de capacitação dos jornalistas profissionais, inclusive com relação à escolha de seus informantes - os quais, muitas vezes, ou carecem igualmente da necessária qualificação técnica e científica para tanto, ou são meros porta-vozes dos lobbies favoráveis aos empresários do setor sucro-alcooleiro e/ou do grande capital vinculado ao chamado agronegócio.
Lobbies com presença e influência também se fazem sentir no âmbito da comunidade científica e tecnológica. As discussões desta fora do Brasil me parecem menos suscetíveis a esse fator e, portanto, mais isentas e com melhor nível do que as do nosso meio. Aqui, além da desinformação, também há casos de censura (inclusive por parte dos órgãos de fomento à pesquisa, estatais e privados), de baixa tolerância às críticas e a pensamentos divergentes, de tendência à desqualificação e à marginalização daqueles que têm opiniões alternativas e independentes.
CC: O senhor considera os biocombustíveis uma boa opção de energia para o Brasil?
TS: Quanto à opção energética, poucos, também aqui, estabelecem uma distinção, desta vez entre o álcool hidratado e o álcool anidro.
O uso deste último como combustível misturado à gasolina numa proporção de até 25% foi, no passado, e continua sendo até hoje, uma boa opção energética para o Brasil, país possuidor de uma ampla agroindústria canavieira e que, até recentemente, não havia atingido uma relativa auto-suficiência na produção do petróleo. Este, aliás, continua sendo importado em parte, o mesmo se dando com o gás natural. A mistura do álcool anidro à gasolina me parece uma boa prática, na medida em que poupa divisas através da substituição de importações atualmente caras.
Essa prática também é interessante do ponto de vista da própria indústria sucro-alcooleira, na medida em que ajuda a diminuir os riscos e os efeitos de uma oferta excessiva de açúcar, permitindo, inclusive, manter certo controle sobre os preços deste. Isto se deve ao fato de o álcool poder ser produzido de duas maneiras: a tradicional, a partir do melaço residual da fabricação de açúcar (álcool residual); e a alternativa à produção do mesmo diretamente a partir do caldo resultante da moagem da cana (álcool direto).
Os problemas, a meu ver, surgem com a excessiva expansão da oferta de álcool hidratado, um produto intermediário na fabricação do álcool anidro (resultante da sua desidratação), e que, ao contrário deste, não tinha e continua não tendo um mercado garantido, seja dentro, seja fora do país. Tentou-se criar, aqui no Brasil, esse mercado através dos carros a álcool das décadas de 1970 e 1980 – uma experiência, cujos resultados, em termos de custos, não foram muito favoráveis. E agora está ocorrendo uma nova tentativa com os chamados carros Flex, cujos motores são abastecidos tanto pela gasolina misturada com álcool anidro como pelo álcool hidratado.
Ainda não se tem até o momento uma avaliação mais precisa dos resultados desta experiência, com respeito às dimensões do mercado interno para o álcool hidratado.
CC: As críticas aos biocombustíveis voltam-se, em frontal oposição aos defensores, à 1) degradação do meio ambiente que será ocasionada pelo cultivo de cana, 2) ao reforço da monocultura e da concentração das propriedades em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos, 3) à submissão da força de trabalho a condições desumanas, 4) à reduzida geração de empregos, e 5) aos ganhos energéticos pouco significativos. Haveria nesses argumentos alguma espécie de paranóia, “eco-ignorância”, como dizem os defensores dos biocombustíveis?
TS: Essas críticas me parecem todas procedentes em termos gerais, carecendo, porém, de uma avaliação mais precisa no exame dos diversos casos individuais, em função da qual uma ou outra podem estar sujeitas a determinadas qualificações. É preciso, face a essa ressalva, ver mais de perto cada uma dessas críticas
CC: Pensando, então, mais detidamente e separadamente, em cada uma dessas críticas aos biocombustíveis, qual a sua avaliação, em primeiro lugar, quanto à degradação do meio ambiente resultante do cultivo da cana?
TS: A degradação do meio ambiente pela expansão das lavouras canavieiras tem início com a sua implantação numa área anteriormente ocupada por outras culturas, pela pecuária extensiva, ou então inexplorada ou vazia.
No primeiro caso, tende a ocorrer uma substituição da policultura pela monocultura; no segundo, dá-se a substituição de uma atividade extensiva por outra; e, no terceiro caso – por exemplo, através do desmatamento –, há um comprometimento, quando não a destruição da biodiversidade pré-existente.
Como se trata de cultivos semi-perenes, e não anuais, as lavouras de cana, se plantados em curva de nível, ajudam a combater a erosão. Ao mesmo tempo, todavia, o uso de máquinas durante os tratos culturais e principalmente monoculturais contribui para a compactação dos solos. Mas os piores impactos acabam sendo ocasionados pelas queimadas que anualmente precedem as colheitas manuais e pelo despejo indiscriminado de vinhaça não tratada.
Esta última prática envolve dois riscos ambientais ainda insuficientemente avaliados: o da penetração desse resíduo altamente poluidor (à razão de dois a três litros para cada litro de álcool), o que junta agrotóxicos no subsolo, comprometendo não apenas o lençol freático, mas aprofundando-se até águas subterrâneas mais profundas – como o aqüífero de Guarani; e o da salinização dos solos pela aplicação contínua e excessiva, com a conseqüente redução da sua fertilidade.
CC: E quanto à concentração das propriedades fundiária, com ênfase na monocultura, em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos?
TS: A concentração da propriedade fundiária provocada pela expansão da monocultura extensiva da cana-de-açúcar pode ser facilmente comprovada por meio dos Censos Agropecuários e, na ausência destes, através do Cadastro do Incra relativo ao ITR (Imposto Territorial Rural).
As origens dessa tendência remontam ao período colonial; trata-se de uma recorrência da elevada integração vertical da agroindústria sucro-alcooleira, uma característica inexistente quer em outros países produtores de açúcar e de álcool, quer em outras ocupações agroindustriais do Brasil.
Paralelamente, em vez de haver uma divisão social do trabalho entre a agricultura e a indústria, as usinas açucareiras e as destilarias (anexas ou autônomas) são proprietárias da maior parte das terras que produzem a matéria-prima dessas agroindústrias. Na medida em que elas vão se expandindo, tanto a produção de alimentos como as pequenas e médias propriedades são eliminadas, com órgãos responsáveis sendo expulsos da agricultura ou empurrados para mais longe dos lugares de consumo de seus produtos.
Essa expansão forçada da fronteira agrícola envolve não apenas grandes migrações internas, mas também uma rápida e intensa destruição da biodiversidade, em áreas de cerrado especialmente.
CC: Quanto às condições desumanas a que é submetida a força de trabalho, os próprios noticiários não têm mais como mascarar essa realidade, não?
TS: Através do monopólio (sem agricultor, diz-se oligopólio) da terra, as usinas açucareiras, que possuem e/ou arrendam milhares de hectares de terras, também adotam o monopsônio (ou melhor, o oligopsônio) no emprego da força de trabalho no setor agropecuário nas regiões em que atuam. Elas empregam muita gente porque ocupam muito espaço, a maior parte das terras disponíveis, eliminando outras alternativas de ocupação da mão-de-obra. Nessas condições, elas têm o poder de impor baixos níveis salariais e/ou péssimas condições de trabalho, como ocorre nas colheitas manuais que pagam por produção (e não por horas trabalhadas).
CC: A geração de empregos é realmente tão reduzida quanto se alardeia?
TS: A geração de empregos por uma atividade pode ser e tem sido grande pelas razões expostas acima. A lavoura canavieira é a que mais pessoas emprega; trata-se porém de ocupações temporárias e sazonais, cujas remunerações têm que ser dimensionadas não pelos meses trabalhados, mas pelos doze meses do ano. Fazendo o ajuste, tais remunerações não são muito superiores aos salários mínimos regionais.
Por outro lado, o grande emprego nem sempre corresponde a uma ampla ocupação da força de trabalho. Mesmo em termos absolutos, há outras culturas que ocupam mais gente no Brasil do que a cana-de-açúcar (algo que pode ser constatado através de dados dos censos e da PNAD), e fazem isso durante o ano todo. Assim, as lavouras canavieiras podem estar desempregando pessoas, em vez de gerarem um maior número de empregos.
É uma tendência que vem se agravando pela crescente mecanização dessa atividade, que, a partir de meados da década de 1990, vem empregando cada vem menos gente por hectare / ano.
CC: E os ganhos energéticos, são mesmo pouco significativos, como analisam os críticos ao biocombustível?
TS: Os ganhos energéticos da agroindústria canavieira são atribuíveis à combustão derivada da queima do bagaço no processamento industrial da cana e sua transformação em açúcar e/ou álcool. Trata-se do excedente de energia transformada ou de fato transferida à rede distribuidora de energia elétrica.
Isso representa, sem dúvida, uma vantagem da cana em relação à beterraba açucareira no que se refere aos custos de processamento industrial.
Mas esse ganho tem que ser contraposto aos gastos de energia das máquinas e caminhões usados no cultivo e na colheita da cana, e também aos gastos do processamento industrial, no transporte do produto muitas vezes a longas distâncias. Este último problema pode ser solucionado através de maior racionalização da produção sucro-alcooleira e através da substituição dos caminhões por dutos, por ferrovias ou barcaças fluviais.
CC: A intensa discussão em que estão envoltos os biocombustíveis se associa de alguma maneira a interesses políticos e econômicos do atual momento vivido pelo capitalismo em escala global? Como isso se dá a seu ver?
TS: A moda atual dos biocombustíveis, e mais particularmente do bioetanol, decorre dos atuais preços do petróleo, provocados pelas intervenções militares do EUA no Oriente Médio. Trata-se de fatores conjunturais, reversíveis a curto e médio prazos. A era Bush, felizmente, está chegando ao fim, e qualquer um de seus sucessores poderá adotar outras políticas com vistas a normalizar as relações internacionais e evitar a ocorrência de uma recessão aguda do sistema capitalista. A partir do momento em que isto se der, haverá uma inflexão das tendências atuais.
Em termos estruturais e no longo prazo, não está havendo uma diminuição das reservas mundiais de petróleo; antes pelo contrário, novas reservas estão sendo descobertas continuamente, inclusive pelo Brasil. Nos países economicamente mais desenvolvidos, há programas de poupança de energia em andamento – inclusive no campo automobilístico, através dos chamados carros híbridos, com motores que não se destinam, como os carros flex, a substituir um combustível por outro, mas a poupar combustíveis em geral.
Por outro lado, os desequilíbrios entre a produção e o consumo decorrentes do intenso consumo de algumas economias asiáticas (China e Índia) não são necessariamente estruturais e também podem assumir um caráter conjuntural.
Diante disso, eu diria que as atuais tendências são movidas por motivos de curto prazo e voltadas para ganhos imediatos e de caráter especulativo, possibilitados pelas condições de países como o Brasil, onde a terra e o trabalho são baratos, e os poderes públicos complacentes e cooptáveis, dominados por minorias poderosas e rentistas, que têm conseguido manter sua hegemonia através do tempo, seja aproximando-se ao capital estrangeiro, seja subordinando a atuação do Estado a seus interesses.
CC: Os defensores dos biocombustíveis contrapõem-se a cada uma das críticas. Com relação àquela que avalia ser a cana uma monocultura, que viria reforçar a concentração de terras, em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos, sinalizam os defensores que, no Brasil, estariam sendo ocupados somente 3 milhões de hectares para a produção de açúcar, outros 3 milhões para a produção de 17 bilhões de litros de álcool, e sobrariam como área passível de ser utilizada para cultivos energéticos nada menos que 300 milhões de hectares – já descontados desse total a área destinada a cultivos agrícolas e as áreas de preservação ambiental. O que você pensa sobre isso?
TS: Os argumentos levantados pelos defensores das atuais políticas e das tendências dominantes não se sustentam e fazem parte das campanhas de desinformação às quais já me referi – antigamente, havia os contos de fadas; hoje em dia predominam os contos da mídia e as verdades pseudocientíficas.
Não há dúvida de que no capitalismo atual tem prevalecido a grande produção, inclusive na agricultura. Mas isto vem ocorrendo em outros países não da mesma forma que no Brasil, não com essa concentração da renda, da riqueza e do poder, que tem como contrapartida o empobrecimento, a exclusão e a miséria de grandes massas da população.
Nos Estados Unidos e na França, não há monocultores e nem usineiros como aqui. Quanto às áreas ocupadas pela cana-de-açúcar, há que compará-las não com a superfície territorial do país, mas com o total das áreas agricultáveis, mas com o total das áreas de colheita, particularmente nos estados que são seus principais produtores – caso de São Paulo, que abastece mais da metade dos canaviais do país, e onde os mesmos ocupam quase metade das áreas cultivadas, relegando a um plano absolutamente secundário o arroz, o feijão e até o café.
Finalmente, no que se refere às áreas de preservação ambiental, há dados empíricos que mostram cabalmente que elas deixaram simplesmente de existir em áreas canavieiras como as dos cerrados de Pernambuco e Alagoas, ou aqui na região de Ribeirão Preto.
CC: Argumenta-se, ademais, nesse sentido, que a fome se deve à pobreza, é questão de falta de renda de vastos setores da população, e não de oferta de alimentos, segundo inclusive participantes da Conferência Internacional Rio+15 em setembro. Supondo que se proíba nesse setor o uso de matéria-prima alimentar, não haveria redução da pobreza no mundo e o preço do petróleo subiria ainda mais. Expandir a produção de bioenergia contribuiria, ademais, para combater a fome, ao gerar novos empreendimentos econômicos e empregos. Qual a sua visão sobre esse argumento?
TS: É verdade que a fome se deve à pobreza, mas esta é gerada pelo preço e/ou pela falta de acesso aos meios de produção capazes de alimentar a população carente.
Na verdade, o mal não está na cana, mas sim no tipo de empresas e de empresários que exploram a sua produção no Brasil, empresários que fazem parte das classes dominantes do país e que são apoiados por estas em detrimento do resto da sociedade – ou melhor, da maioria.
O aumento da produção de biocombustíveis não faz, nem fará, baixar o preços do petróleo. É a elevação dos preços que tem feito crescer a produção de álcool; na hora em que os preços do petróleo baixarem, haverá uma superprodução de álcool, como já ocorreu no passado.
Muitos dos novos empreendimentos surgidos na atual conjuntura deixarão de existir ou terão que mudar de ramo; alguns deles, aliás, nem sequer saíram ainda do papel em que foram inscritos.
A geração de empregos poderá existir, mas não será grande nem automaticamente capaz de sustentar-se por si só.
CC: Haveria ainda, nessa linha de argumentos, os ganhos de produtividade da lavoura advindos da inovação tecnológica, possibilitando aumentar a produção por terra cultivável. O que você pensa sobre isso?
TS: Os ganhos de produtividade da agroindústria canavieira ocorreram de fato, mais no segmento industrial do que no agrícola. Os ganhos se deram pela adoção de novas variedades de cana, que fazem aumentar a produção de açúcar e de álcool por hectare. Mas no que se refere à cana em si, a produtividade é medida em toneladas por hectare e não tem crescido muito, razão pela qual a lavoura canavieira continua sendo uma monocultura extensiva, cuja produção cresce mais em função da área cultivada do que devido a crescentes rendimentos por unidades de área.
Os ganhos de produtividade agroindustrial que acabam de ser mencionados constituem um argumento favorável à diminuição, e não ao aumento das áreas cultivadas. Isso é algo que poderá talvez ocorrer por meio da extração de álcool da celulose, e não mais do caldo, da cana – uma tecnologia ainda não disponível, por meio da qual se poderá aumentar muito a produtividade agroindustrial por hectare cultivado.
CC: O jornalista Vinícios Torres Freire chegou a alertar, em artigo na Folha de São Paulo, que a “teoria alcoolismo ignora o ganho de renda de países pobres que plantariam cana (e poderiam comprar comida, que ainda sobra no mundo), ignora ganhos de produtividade das lavouras e os estímulos de preço (se a comida fica cara, planta-se mais comida)”. Quanto ao ganho de renda, cita-se, por exemplo, que, dos 17 bilhões de litros de álcool produzidos atualmente, poder-se-ia chegar a 44 bilhões de litros em 2016, segundo o mais recente (e crítico) documento da própria FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). No que se refere aos estímulos de preço, considerando características singulares de um país como o nosso - tais quais o sol, as terras agricultáveis e até mesmo a água -, o argumento crítico relativo aos impactos da produção de biocombustíveis na elevação dos preços de alimentos seria pouco significativo: preços em elevação seriam, outrossim, um estímulo à expansão da produção. O que você responderia?
TS: Não conheço o artigo do referido jornalista, mas poderia comentar as idéias que ele veicula da seguinte forma: (a) plantar mais comida em um país dominado pela cana é algo complicado, como se pode observar pela história da zona da mata no nordeste. No caso de São Paulo, atualmente, boa parte do abastecimento alimentar vem dos estados do Sul, graças ao fato de a expansão canavieira não poder ir além do norte do Paraná, por razões climáticas; (b) Os repiques inflacionários através da alta dos preços dos produtos alimentícios no Brasil podem ser atribuídos à expansão canavieira; em âmbito internacional, também tem havido uma alta, em função do aumento dos preços do milho usado tanto para fazer álcool nos EUA, como para fabricar ração para animais produtores de carne.
CC: Ainda nessa linha, insinua-se que o cultivo do etanol colocaria o Brasil em uma escala ainda mais privilegiada no comércio internacional de commodities, no caso os bios, com significativos ganhos de renda. Nesse sentido, advoga-se a redução de tarifas por parte de países desenvolvidos para impulsionar esse comércio, com o que se incluiriam os emergentes em um “novo ciclo de geração de riqueza”. O que você pensa sobre isso?
TS: Os programas de biocombustíveis dos países mais desenvolvidos não se destinam a abrir mercados para países em desenvolvimento, mas para resolver seus próprios problemas de curto, médio e longo prazos.
CC: Quanto à crítica relativa ao balanço energético negativo do álcool – onde se gastaria mais combustível fóssil para produzi-lo do que aquele que ele economizaria -, o físico Rogério Cezar Cerqueira Leite diz que, para cada unidade de combustível fóssil despendida para produzir o álcool, mais de 8 unidades deixarão de ser queimadas. É correto esse raciocínio, a seu ver?
TS: Não entendi bem o raciocínio do professor Cerqueira Leite, e tampouco pude perceber qual é a sua relevância prática. O álcool nunca conseguirá substituir uma grande parte do consumo de petróleo, e um excessivo aumento de sua produção acaba criando uma série de problemas sociais, econômicos e ambientais.
CC: No que se refere à degradação ambiental, o mesmo Rogério César avalia que as terras mais férteis do globo são aquelas cultivadas há séculos, e que, atualmente, não existe mais no Brasil vinhoto nos rios e nos mananciais e que a queima de palha já foi reduzida e o será mais ainda com a mecanização da lavoura. Qual a sua opinião?
TS: Também aqui há vários argumentos misturados e cuja relevância prática é difícil avaliar. A presença de vinhoto em cursos d’água e em mananciais continua existindo no Brasil, embora não seja registrada por falta de fiscalização. A colheita mecanizada de cana crua é ambientalmente e também do ponto de vista trabalhista a melhor prática possível. Mas ela precisaria ser complementada pela liberação das áreas não mecanizadas para outras culturas, e inclusive para a reforma agrária, se essas culturas não surgirem espontaneamente.
Na verdade, uma medida de fundamental importância seria a adoção de um zoneamento agroecológico e socioeconômico entre as diversas culturas e atividades, a fim de manter uma convivência entre as grandes lavouras, de um lado, e policulturas e biodiversidade, do outro.
CC: Dizem ainda os defensores do etanol que a preocupação com a água consumida pela cultura da cana é infundada, na medida em que o que existe é um complexo processo de ingestão/evaporação, no qual a água voltaria para a natureza na mesma proporção em que foi utilizada. O que você pensa disso?
TS: A cana de açúcar requer muita água, o mesmo se dando com o segmento industrial da agroindústria. Se este recurso for suficiente ou abundante, não há maiores problemas. Mas, caso isto não ocorra – por exemplo, na agricultura irrigada –, surgem problemas de prioridade social e econômica. E, no caso das usinas e destilarias, há o problema da cobrança da água utilizada e às vezes poluída por elas.
CC: Em uma versão mais política, a defesa do etanol chega também a citar Fidel Castro e Hugo Chávez, que teriam “virado a casaca”, passando de defensores a críticos contumazes do etanol em apenas um mês, uma vez diante da possibilidade de concretização da parceria Brasil-EUA na produção de bioenergia – especialmente após a vinda de Bush ao Brasil. Quanto a Chávez, especificamente, teria um motivo a mais para estar à revelia do projeto, um concorrente em potencial para o petróleo venezuelano. O que responder a essa versão?
TS: As críticas a Fidel Castro e a Hugo Chávez me parecem tão ridículas quanto a confiança depositada nas profecias de Bush para o Brasil.
Correio da Cidadania: Existe um grupo de entusiastas do etanol, a exemplo do físico e “pai do Proálcool”, José Walter Bautista Vidal, que o vê como uma grande oportunidade em um país que tem excelentes condições naturais para o cultivo da cana, com água e terra abundantes, uma tradição de mais de 400 anos em sua plantação, além de cerca de 40 anos no desenvolvimento da tecnologia do álcool. Mas, ao mesmo tempo em que enxergam o Brasil como uma possível potência energética, são cautelosos ao perceberem um governo que não possui um projeto bem delineado para o desenvolvimento do etanol, correndo o risco de perder o bonde tecnológico e também o controle da cadeia de distribuição de um setor de importância estratégica, que não poderia ficar nas mãos de umas poucas multinacionais. Como você encara essa percepção de nossa realidade?
Tamás Szmrecsányi: Ao contrário de Bautista Vidal, não sou nem nunca fui entusiasta do Proálcool, principalmente do modo que como foi feito, em benefício exclusivo de algumas centenas de usineiros, herdeiros dos senhores de engenho coloniais, concentradores das terras e da oferta de empregos.
A cana-de-açúcar é uma planta versátil, capaz de produzir muitas coisas úteis e agradáveis. Mas é preciso lembrar que os solos e águas em que se baseia a sua cultura são mais flexíveis ainda, capazes de produzir muitas outras coisas igualmente necessárias para a vida humana e social, e de beneficiar muito mais pessoas do que apenas e unicamente a agroindústria canavieira.
Esta, em conseqüência disto, não pode e nem deve ter o monopólio de todos os recursos naturais disponíveis. Embora reconheçamos o potencial do álcool, não vejo nele uma panacéia capaz de resolver todos os nossos problemas de subdesenvolvimento e de dependência. Antes, pelo contrário, considero que um aumento indiscriminado e sem critérios de sua produção poderá trazer – e já está trazendo – à tona outros problemas de difícil solução.
No que se refere ao controle de sua distribuição por algumas poucas multinacionais, acredito que o risco existe, mas são os próprios empresários do setor que preferem não confiá-la ao governo ou a uma entidade estatal como a Petrobras.
De um modo geral, o chamado agronegócio está fortemente integrado no que eu chamo de burguesia colonial. O risco de perderem o bonde tecnológico também existe, apesar dos investimentos feitos recentemente por entidades de fomento como a Fapesp e o CNPq.
CC: Haveria algum modelo de produção de biocombustíveis adequado para o Brasil?
TS: O modelo de produção de biocombustíveis adequado para o Brasil seria um voltado prioritariamente para as necessidades do mercado interno, e não para hipotéticos e problemáticos mercados de exportação. Essas necessidades possuem, evidentemente, os seus limites, mas se trata de um mercado garantido, expansível e mais fácil de ser controlado.
Apenas os eventuais excedentes deveriam ser exportados. E, já que o Brasil é um país tecnologicamente tão avançado na produção de álcool, esse mercado deve permanecer aberto à concorrência de outros fornecedores e de outras fontes energéticas, a fim de evitar qualquer acomodação tecnológica e de garantir a continuidade do progresso técnico no setor.
CC: Um de nossos colunistas advoga, por exemplo, que o “problema da humanidade consiste em aprender como bater-se, não contra os biocombustíveis ou as novas tecnologias, mas contra o capitalismo, que os utiliza apenas para seu lucro exclusivo. Sob este ângulo, os camponeses poderiam redirecionar sua luta, para aliar-se às classes e segmentos sociais que enxergam nos biocombustíveis uma nova oportunidade de sobrevivência. E, do ponto de vista econômico, talvez essa seja uma boa oportunidade tecnológica para os camponeses cultivarem plantas produtoras de biocombustíveis, adaptáveis às pequenas e médias propriedades”. Como você encararia essa defesa?
TS: Diria apenas que dentro do modelo atual inexistem possibilidades de conciliação entre pequenos produtores e a agroindústria canavieira.
No nível de assentamentos do INCRA, poder-se-ia eventualmente pensar em micro-destilarias de álcool e/ou micro-usinas de processamento de oleaginosas para a produção de biodiesel, cujos proprietários seriam os próprios assentados junto com o INCRA, a quem pertenceriam as terras onde cultivam.
Mas isto se contraporia ao sistema ora vigente e não parece ter maior aceitação dentro do governo, para não falar dos usineiros, que desejam transformar os assentados em fornecedores de cana ou simplesmente apossar-se do controle das terras deles via arrendamento. Ambas essas alternativas poriam fim (e em alguns casos já estão pondo) ao arremedo de reforma agrária ora praticado no Brasil.
CC: Existem ainda aqueles que consideram os biocombustíveis um item estratégico na preparação do mundo para o fim da era do petróleo, em transição para a “era solar” da qual fazem parte a bioenergia e outras fontes renováveis. Expedito Parente, o engenheiro químico que criou e patenteou o biodiesel no Brasil há 30 anos e que agora formou a empresa Tecbio Tecnologias Bioenergéticas, que desenvolve o bioquerosene para aviação, afirma que suas matérias-primas principais tenderão a ser óleos derivados de frutos de diversas palmeiras, como o coco da Bahia, na realidade proveniente da África, e outras nativas do Brasil, como o babaçu, abundante em uma extensa região do nordeste e norte do país. Você acredita nessas hipóteses?
TS: Não acredito, por enquanto, nem no fim da era do petróleo nem na capacidade de os biocombustíveis virem a substituí-lo, a não ser marginalmente, dentro de uma hipotética “era solar”. Em compensação, sou favorável tanto à energia solar como à energia eólica e à das marés, que são todas modalidades de energia limpa sem impactos sobre a estrutura fundiária, já tão concentrada, de nosso país.
CC: Jorio Dauster, presidente da Brasil Ecodiesel, considerou, por sua vez, em entrevista à IPS, que, inicialmente, predominaria a soja, que não apresenta a melhor eficiência energética, mas é a que dispõe de estrutura produtiva em 20% a 30% do total das matérias-primas. O girassol seria uma excelente matéria-prima, mas sua produção era quase nula no Brasil e somente agora, com o biodiesel, ganhou novas perspectivas de expansão, inclusive em combinação com a soja e outros cultivos de verão. O rícino passou a chamar a atenção, mas, até agora relegado, sua produtividade no país chegaria a apenas 500 quilos por hectares, menos da metade daquela registrada na Índia. Outra possibilidade destacada por Dauster seria o melhor aproveitamento do algodão, mas tudo isso exigiria uma nova estrutura produtiva, com a instalação de indústrias de óleo, e a eliminação de distorções na economia brasileira, que favorecem, por exemplo, a exportação de soja em grão, em lugar do óleo. Você enxerga também essas possibilidades?
TS: Não me considero especialista em oleaginosas e biodiesel. Até onde sei, o Brasil encontra-se em uma posição de relativo atraso tecnológico nesse aproveitamento energético, o qual me parece, por enquanto, menos nocivo do que o do álcool em termos econômicos e sociais.
Neste caso, tratar-se-ia mais de agregar valor a uma produção agrícola já existente do que de expandir a todo custo uma monocultura extensiva como a da cana-de-açúcar. Devido a isso tendo a concordar com as opiniões de Jorio Dauster.
CC: Como você vem enxergando a postura do governo diante desse quadro?E quanto à postura dos movimentos sociais, como estão e qual deveria ser seu papel?
TS: O governo não parece ter o mínimo interesse nessas questões. Os movimentos sociais procuram interessar-se por elas e até inventar metas para criar novas opções.
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