A arte dos adolescentes
Agora recordo: uns anos atrás, nos bancos de faculdade, a turma esperava as indicações bibliográficas para o semestre. "Introdução à História da Arte", eis o título da disciplina. E o professor, com total seriedade, informando os alunos que só havia um livro verdadeiramente obrigatório: a Bíblia. A turma ouviu o conselho e abriu a boca de espanto. A Bíblia?
Sim, a Bíblia. Sem um conhecimento do Antigo e do Novo Testamentos; mas também sem alguma intimidade com outros textos religiosos --a Vida dos Santos e mesmo os Textos Apócrifos-- era inútil tentar entender a história da arte no Ocidente.
Escuso de dizer que o homem estava certo. Olhando para os últimos 17 ou 18 séculos --desde as primeiras expressões de arte paleocristã-- é a figura de Cristo e a sua herança que se encontram presentes em cada quadro, escultura ou igreja ocidental. E, se esquecermos a Idade Média e a sua longa meditação artística sobre o sagrado, mesmo o Renascimento, ao procurar "resgatar" a herança greco-latina (o que implicava resgatar a figura humana que os medievais colocavam numa posição de inferioridade hierárquica face ao divino), foi sobretudo para melhor servir a história sacra.
Giotto, por exemplo, um revolucionário que operou essa transição entre a medievalidade e a era moderna ao pintar figuras sagradas como se fossem humanas (um prenúncio da revolução maior, que viria dois séculos depois com Caravaggio), não prescindiu dos textos bíblicos, ou religiosos, como se vê na Basílica de S. João de Latrão, em Roma. E sobre Caravaggio, conhecer o primeiro grande pintor barroco implica conhecer também a vocação e o martírio de S. Mateus (hoje na igreja romana de San Luigi dei Francesi), ou saber as histórias da crucificação de Pedro ou da conversão de Paulo (temas que dominam a Capela Cerasi, na igreja de Santa Maria del Popolo, também na capital italiana). O desconhecimento da religião cristã é, no essencial, o desconhecimento da identidade cultural do Ocidente. E causa maior da ignorância, da estupidez e da mediocridade que define, artisticamente falando, o nosso tempo.
Aliás, não é preciso acreditar no divino para acreditar no papel da religião na construção dessa identidade. Que o diga Camille Paglia, que em texto recente se apresenta como ateia e libertária de esquerda --e, apesar disso, defensora da necessidade de estudos religiosos nos currículos universitários das Humanidades. Uma sociedade totalmente secularizada, que despreza a religião e eleva o materialismo a um novo e único deus, só pode gerar uma arte entediante e adolescente. E, do ponto de vista histórico, falsamente rebelde: a arte "oposicional" começou com os românticos e morreu, algures, na década de 60, com o estertor pop. Bater na mesma tecla é bater em tecla gasta, repetitiva e artisticamente estéril.
Paglia tem razão. Não apenas pelo retrato atual de grande parte da arte contemporânea --um caso extremo, e bem irônico, de "rebelião como convenção"; Paglia acerta também ao atribuir aos românticos o início de uma "arte de ruptura" que terminou meio século atrás, com as paródias e as auto-paródias de Warhol e companhia.
Um ponto, porém, parece ignorado por Paglia: é que mesmo o romantismo, na sua recusa da "tradição" (a começar pela tradição neoclássica), não ignorou o que podia aprender com ela. Na pintura, e apenas na pintura, a ruptura romântica não ignorou o que podia aprender com os pré-românticos de finais do século 18, sobretudo com o (chamado) movimento dos Nazarenos, ligado a autores tão "clássicos", e tão místicos, como Perugino.
Se a história da arte deixa uma lição aos artistas de hoje é que não existe verdadeira "novidade" sem um entendimento da "tradição": sem esse sentido histórico que, para usar as palavras de T. S. Eliot, leva alguém a escrever (ou a pintar, ou a esculpir) como se a literatura ocidental estivesse presente no momento presente. Porque só esse entendimento permite uma verdadeira continuidade, ou uma reformulação, ou até uma ruptura com o passado.
A criação no vazio, típica de adolescentes, apenas produz grande parte da arte adolescente que ocupa os nossos museus, ou as nossas estantes privadas.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult2707u317859.shtml
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