Escassez de estadistas
Marco Aurélio Nogueira - Novembro 2007
O inusitado bate-boca entre o rei Juan Carlos, da Espanha, e o presidente venezuelano Hugo Chávez, no início de novembro, em Santiago do Chile, na 17ª Cúpula Iberoamericana, pode ter trazido à mente de muitas pessoas a imagem de que já não se fazem mais estadistas como antigamente.
Convém começar demarcando o terreno. Palavras ásperas, modos grosseiros, agressividade verbal e destempero não são de modo algum atitudes estranhas ao universo da política. Disputam espaço, palmo a palmo, com o sarcasmo, a ironia, a simulação e a dissimulação, a coação, a chantagem e a força. São formas expressivas da palavra e do gestual específico da política. Não haveria por que ficarmos escandalizados, portanto, quando um rei e um presidente atacam-se com farpas e palavrões, por mais que isso seja feio e cause má impressão. Se fizerem isso em nome de uma boa causa, de um conteúdo oculto que venha a se manifestar mais à frente, obterão o beneplácito dos deuses.
No caso em questão, é aí que o carro pega. Tirando o fato de que a reunião de cúpula onde se deu a briga pouco produziu de importante, o confronto revelou uma face triste da política atual: a do vazio comunicacional, da falta de substância, da teatralização gratuita. O meritório esforço diplomático e ponderador do premiê espanhol José Luis Rodríguez Zapatero foi um fugaz facho de luz, que somente serviu para destacar a escuridão.
Já deveríamos ter nos acostumado com o histrionismo de Chávez, característica que praticamente organiza o seu self político. Sem ele, Chávez não é Chávez. Trata-se de uma forma de exercer comando e protagonizar a cena: espetacular, imagética, redundante, hiperbólica, como se a vitória política dependesse não do teor da argumentação ou da mensagem, mas da contundência verbal, da demolição ou da saturação do adversário, reflexo de certa obstinação em ganhar todos os confrontos e discussões. É um estilo decodificável, válido em certas circunstâncias, que requer dos interlocutores uma dose alta de paciência, serenidade e sangue-frio.
Não se pode recriminar Chávez por dele se valer. O presidente venezuelano não é um político qualquer e não há como criticá-lo por falta de apoio popular, muito pelo contrário. Seu governo não parece sustentado por nenhuma idéia particularmente brilhante, mas Chávez tem se mostrado muito eficiente no que diz respeito à comunicação com seu povo, sinal de que, ao menos na Venezuela, seu estilo político produz efeito.
Mas bastaria talento comunicativo, veemência e apoio popular para que se tenha um estadista? Do mesmo modo: teria se comportado como estadista o rei Juan Carlos, quando mandou Chávez calar a boca, para defender as cores e a honra da Espanha?
Poderíamos completar esta pequena galeria de maus passos políticos com a enigmática fala do presidente Lula, dias atrás, a respeito de democracia, sistemas de governo e permanência no poder. Com o intuito de defender Chávez das acusações de antidemocrata, e em nome da justa idéia de que se deve sempre “respeitar a soberania de cada país”, o presidente brasileiro atropelou a teoria política para definir a democracia como um regime cuja única e suficiente regra é a permanente consulta popular. Banalizou o fato de um governante querer se prolongar no cargo, usando como exemplo os longos períodos de governo de alguns primeiros-ministros, sob a alegação de que não há nenhuma distinção neste aspecto entre o presidencialismo e o parlamentarismo (“muda apenas o sistema, mas o que importa não é o regime, é o exercício do poder”). Não foi uma contribuição para a educação política da população.
Estadistas não são governantes que contam com apoio popular, discursam com paixão e se esmeram na defesa intransigente de seus países. Devem fazer isso também, mas espera-se que façam mais. Não são necessariamente pessoas cultas, educadas e corteses, ainda que se espere que se comportem de acordo com certos parâmetros de respeito e civismo e ajam prioritariamente segundo regras institucionais e procedimentos diplomáticos.
Estadistas são acima de tudo governantes que se destacam por possuir e encarnar um projeto coletivo, quer dizer, um projeto de sociedade ou de unidade nacional, que inclua mais que exclua e anuncie com clareza um futuro plausível e “desejável”, uma vida digna para todos, não somente para os que estão do seu lado ou pensam como ele. Não se distinguem pelo carisma ou pela lealdade às tradições de seu povo, por mais que isso seja relevante. Sua diferença específica repousa na capacidade de agregar diferenças, unificá-las e organizá-las em um Estado, em uma comunidade política, isto é, em uma associação que se movimenta segundo pactos simbólicos e institucionais que balizam e promovem a vida coletiva.
Deste ponto de vista, a nossa é uma época opaca, meio melancólica, condenada a governantes sem muita densidade, que atuam mais como operadores administrativos do que como formuladores de projetos ou construtores de consensos.
Estadistas andam escassos porque faltam talentos à política. Hoje, por carecer de paixão e sentido e não dispor de molduras institucionais coerentes, a política não está conseguindo selecionar as melhores lideranças. São escassos, também, porque os governantes dos nossos dias governam com limites elevados, que muitas vezes os impedem de ter papel de relevo. E são escassos, por fim, porque líderes e governantes não têm mais como cumprir a função precípua de unir o povo e organizar um projeto de sociedade. As sociedades da era capitalista global estão fragmentadas e individualizadas demais para que alguém, num estalar de dedos, as articule e mobilize para um empreendimento coletivo sustentável.
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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da política (2001) e Um Estado para a sociedade civil (2004). Este texto também foi publicado em La Insignia.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24 nov. 2007.
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